Grande Angular - O Estado social: vitória e fiasco
Por António Barreto
O bem-estar e o conforto da população portuguesa tiveram melhoramentos importantes ao longo das últimas décadas. Os equipamentos e os electrodomésticos conheceram uma evolução impressionante. As grandes redes públicas disponíveis a domicilio, água, esgotos, electricidade, telefone e gás, ficaram praticamente acessíveis a toda a população nos anos noventa (partindo por vezes de percentagens da ordem dos 20 ou 30%). O mesmo se pode dizer dos equipamentos individuais e familiares, água quente, aquecimento, luz eléctrica, telefone, televisão e outros electrodomésticos que, dos anos setenta ao fim do século, chegaram a quase todas as casas. O número de pensões da segurança social e da Caixa Geral de Aposentações passou de cerca de 260 000, em 1970, para mais de 3 500 000, em 2018.
Se olharmos com atenção para outros indicadores ou “sinais”, como sejam os consumos alimentares de carne, peixe e produtos lácteos, por exemplo, ou o género de vestuário, os transportes, a saúde e a educação, depressa verificaremos que o progresso foi colossal. Também o Estado social, no seu conceito mais imediato (sobretudo Segurança social, Educação e Saúde), cresceu e melhorou, até ao fim do século, de maneira muito significativa. Toda a população, empregada ou não, contributiva ou não, foi integrada no sistema.
Sem perder de vista este progresso notável, convém olhar para outros aspectos. Depressa chegaremos à conclusão que o Estado social, além de ter vingado, também falhou. Especialmente na repartição de rendimentos, parâmetro clássico. Durante os primeiros anos a seguir à revolução, os rendimentos do trabalho e a despesa social aumentaram muito consideravelmente, certamente mais do que permitia a economia. Foi uma mudança importante, para um país tão desigual como o nosso. Logo a seguir, todavia, os desmandos da revolução, a crise económica e a tentativa de repor equilíbrios, fizeram com que a repartição de rendimentos estivesse dezenas de anos a agravar-se para o trabalho. Ainda há poucos anos, a parte dos salários no rendimento nacional era menor do que a equivalente na década de 1970. Isto é, o trabalho perdeu relativamente ao capital e à propriedade, às rendas e aos lucros.
Só no século XXI, depois de 2010, é que os salários mínimos e as pensões mínimas do regime geral da Segurança social alcançaram valores iguais aos de 1974. A preços constantes, só agora o salário mínimo ultrapassou os memoráveis 3 300 escudos de 1974, ano em que foi criado esse dispositivo. Também as pensões mínimas de velhice e invalidez só a partir de 2010, mais ou menos, chegaram aos valores de há quarenta anos.
Os famosos índices de Gini, que medem o grau de desigualdade numa economia e numa sociedade, revelam bem que certos progressos se vão fazendo, mas muito lentamente. E são facilmente postos em causa, como ocorreu durante o período dito de “assistência internacional” ou da “Troika”. Noutras palavras, os graus de desigualdade são, em Portugal, dos mais visíveis da Europa e do mundo ocidental. Com a ajuda dos trabalhos de Carlos Farinha Rodrigues e artigos de vários jornalistas ou comentadores, como em especial Alexandre Abreu, no Expresso, temos a clara visão de que os melhoramentos, por vezes reais, são no entanto frágeis e de pouca duração. Além disso, ficam aquém do que se passa na maior parte dos países europeus. Há, na sociedade portuguesa, poderosos factores de desigualdade social. Assim como fortes obstáculos à mobilidade social. Qual é a realidade desses factores? A propriedade? Sim, mas tanto é causa como consequência. O fisco e o regime sucessório? Talvez. A segregação social e económica nos serviços educativos? É possível. O sistema de cunhas e favores que vigora em todo o país? É provável. As leis? É difícil avaliar. A religião? Hoje, provavelmente não. O analfabetismo? Com certeza, mas já não é a mesma coisa. As muitas décadas de ditadura? Seguramente. Há ainda outros factores de muito difícil avaliação, mas que podem ter consequências nos graus de desigualdade: por exemplo, as migrações (emigração e imigração), a política, o sistema partidário e o centralismo administrativo têm provavelmente efeitos, mas de muito difícil avaliação.
A desigualdade social entre nós é muito maior antes de contabilizadas as prestações sociais. Quer isto dizer que o contributo do Estado social para esbater a desigualdade é real, mas muito insuficiente. O Estado social português, cujo início pode ser datado do final dos anos sessenta, está em parte na origem de melhoramentos extraordinários, mas em parte falhou. Hoje, os sinais mais evidentes desse falhanço poderão estar visíveis no modo como pensões e salários mínimos evoluíram, assim como no modo como se faz a repartição social do rendimento.
É verdade que a evolução da produtividade foi fraca, o que reduz as probabilidades de melhoria dos rendimentos. Mas, mesmo com o fraco desenvolvimento económico das últimas décadas, o Estado português poderia ter feito melhor. Tanto para criar riqueza, como para a distribuir. Difícil é encontrar responsabilidades. Quem serão? As direitas, porque são indiferentes e não estão interessadas na igualdade social. As esquerdas, porque são demagógicas e corruptas. Juntas, esquerdas e direitas, porque são incompetentes e pensam exclusivamente no poder político e nos votos. As classes empresariais, porque são cúpidas e incultas. Os sindicatos, porque realmente só se interessam pelo poder político e pelos seus sócios. A Administração Pública, porque pensa sobretudo nela própria e porque não está pressionada para prestar atenção à questão social. As Universidades, porque estão mais interessadas em fazer política do que em estudar a realidade social.
Habituados como estamos a medir tudo, a apresentar estatísticas e percentagens a propósito de qualquer coisa e nada, temos às vezes dificuldade em sentir as desigualdades no quotidiano, sem recurso a indicadores. Ora, a verdade é que há uma dimensão da desigualdade particularmente presente entre nós. Os serviços públicos são iníquos e mal organizados. Todos os elogios que se fazem ao Serviço Nacional de Saúde, por exemplo, esquecem quase sempre que é esse mesmo serviço que, perante os fracos e os sem poder, demora meses e anos para uma consulta, uma análise ou uma cirurgia. O atendimento da maior parte dos serviços públicos (segurança social, serviço de estrangeiros, impostos, finanças, justiça, notariado e registos) é desorganizado e, com frequência, injusto, pois os poderosos podem sempre encontrar soluções. Há, nos serviços públicos, uma desigualdade invisível cruel. É essa a grande fraqueza do Estado social.
Público, 23.2.2020
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3 Comments:
«Difícil é encontrar responsabilidades»
É em Portugal tão fácil ganhar eleições e ser ministro. E encher a AR de advogados ou juristas, dispensando engenheiros, médicos e professores... Muito mais 'profissionais' assim. 'Profissionais' acabados de formar em cursos pouco exigentes, quase sem experiência de trabalho em empresas ou actividades económicas. Um bom trmpolim de ascenção social, não custa muito e pode dar milhões.
Responsabilidades? Como, se a Parque Escolar socrática foi uma 'festa' digna de uma boa farra para as construtoras e a ministra?
B. Monteiro
Como eu trabalhei mais de 3 décadas no mundo empresarial, sou sensível ao problema que refere:
A esmagadora maioria dos nossos políticos (desde autarcas a governantes) não faz a menor ideia do que é esse mundo, que implica ganhar obras, gerir orçamentos, pagar impostos, garantir salários, etc.
Só assim se compreende a leviandade com que inventam novas taxas e impostos, alteram leis, etc.
Não percebem (nem nunca vão perceber) a importância da estabilidade (legislativa/fiscal, etc) para os investimentos e para a economia, em geral.
CMR O seu comentário reflecte a realidade do nosso país.
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