Grande Angular - Tempo de decisões
Por António Barreto
Preparemo-nos para uma longa caminhada. Que teremos de percorrer sem conhecer as dificuldades, muito menos o resultado. Preparemo-nos para decisões difíceis. É verdade que todos os tempos são decisivos, é o que se aprende com a política. Mas há os que são mais do que outros. Estamos agora, como outras vezes na nossa vida recente, em tempo de escolhas especialmente importantes. Comparáveis às que tivemos de fazer com a Constituição e o regime democrático; ou com a adesão à Comunidade Europeia. Com várias eleições e outros tantos orçamentos à nossa frente, com um poderoso programa europeu de ajuda financeira e com vários factores de crise a exigir soluções, chegamos gradualmente ao ponto em que não se pode adiar mais o fundamental: a natureza do regime político e do sistema social e económico. Que parecem consolidados, mas não estão.
Na verdade, são decisões excepcionalmente difíceis, porque as adiámos. Mas também porque difíceis foram os tempos que vivemos neste século XXI. Os portugueses tiveram especialmente má sorte. Ou atravessaram períodos particularmente difíceis. Uns, por responsabilidades suas. Outros, porque a sua origem internacional os ultrapassaram. Mas deve reconhecer-se que se tratou de uma série excepcionalmente difícil ou dolorosa. Os governos de José Sócrates, de triste sina e má fama. A crise financeira internacional e a crise da divida soberana. A quase bancarrota nacional e o grave endividamento público e privado. A assistência internacional e a troika. A pandemia da COVID. Dois períodos de muito intenso desemprego e de elevado número de falências. Muitos outros países partilharam connosco algumas destas crises. Certos povos tiveram mesmo crises diferentes. Mas reconheçamos que nos coube um quinhão particularmente pesado. O que faz com que, em vinte anos, não crescemos, não nos desenvolvemos, nem nos aproximámos da Europa. Em vinte anos, caminhámos para o último lugar da União.
Depois de alguns anos de crescimento, de real desenvolvimento e de melhoria das condições de vida, começámos a verificar que, desde o inicio deste século, as nossas estruturas produtivas eram muito mais frágeis do que se pensava, muito menos eficientes do que se imaginava. Aquilo que se designava, nos anos oitenta, pelo eufemismo “a prosperidade é geral, mas ainda há bolsas de pobreza e de atraso”, era finalmente uma enorme ilusão. Mais depressa se tratava de “a pobreza é geral e só há algumas bolsas de riqueza e de desenvolvimento”.
Com a sucessão das crises do século XXI, a realidade ficou intensamente mais nítida e cruel. São enormes as debilidades do investimento, da criação de novas produções e de novas vias de exportação consolidada. Estas crises mostraram as fragilidades fundamentais da economia e da sociedade e a pobreza de ambas. Tornaram mais visíveis a falta de capital e de ciência, a mediocridade das estruturas empresariais e a fraqueza dos grupos económicos. Sublinharam a reduzida competência do Estado e dos governos. Patentearam a venalidade de tantos políticos democráticos, assim como a corrupção e o nepotismo que parecem ser, entre nós, costumes impunes ou aceitáveis.
Este último aspecto, o da corrupção, do nepotismo e do favoritismo, é particularmente cru, num país com tanta pobreza. A incapacidade do sistema político para combater tais deficiências e a dificuldade da justiça para punir e prevenir são especialmente dolorosas num país tão desigual.
Não é seguro que se confirme em Portugal o velho mito da destruição criadora. Na verdade, algumas das melhores empresas portuguesas, as mais internacionais, as mais produtivas e as mais avançadas foram destruídas ou submetidas a grupos e fundos externos, para os quais a economia e a sociedade portuguesas não são prioridades nem horizontes. É pouco provável que estas boas empresas voltem ou renasçam.
Até agora, resistimos. Ou antes, os portugueses conseguiram sobreviver. Endividados, com muitos desempregados em cada família, sem poupança nem aforro, com enormes dificuldades para encontrar emprego para os filhos que entretanto tiveram mais qualificações e mais instrução, muitos sentiram-se novamente obrigados a recorrer à emigração. Mas resistimos. Sem pôr em causa a coesão nacional, nem as instituições democráticas. Alguns serviços públicos aguentaram e resistiram, com especial relevo para os da saúde. Mesmo se com enorme esforço e com grandes carências.
Para sair das crises, para curar as feridas, para relançar e criar a economia e para finalmente desenvolver, vai ser necessário repensar e partir com novas bases. Os últimos anos mostraram que não se pode nem deve adiar mais. Mostraram que as escolhas são cada vez mais inevitáveis e inadiáveis. Há muito que não estávamos diante de dilemas essenciais. Como poucas vezes no passado, vamos decidir, nos próximos dois a três anos, se queremos ou não ter mercado e iniciativa privada. Se nos organizamos para o desenvolvimento económico. Se damos confiança aos investidores nacionais e estrangeiros. Se somos capazes de novos grandes projectos. Se queremos realmente promover a colaboração do público com o privado. Se queremos cuidar das bases económicas indispensáveis ao Estado social e à sua consolidação. Se estamos ou não à altura de crescer economicamente mais do que os restantes países europeus ou grande parte deles.
Teremos de decidir se somos ou não capazes de criar um poder político que seja capaz das escolhas difíceis e não se submeta à estratégia da duração e às tácticas da manutenção. Teremos em particular de decidir se aceitamos a lógica infernal da esquerda contra a direita e da prioridade aos governos sectários.
Já sabemos que a direita radical quer destruir o regime democrático. Com democracia e com uma estratégia política de interesse comum, é possível impedir tal intento. Já sabemos que a esquerda radical quer apoderar-se do regime democrático. Também é possível impedir tal intenção. O que não parece possível é tentar preservar o regime democrático com aqueles que o querem destruir. Nem com os que dele se querem apoderar.
Público, 7.8.2021
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