UMA DAS PRAIAS mais belas que conheço é a do Canavial, com a sua água límpida em perfeita harmonia com rochas, arribas, grutas e algares, que atraem gente de todo o mundo — não só turistas, mas também estudiosos de Geologia e Paleontologia. Ora, e talvez por ser de acesso difícil (há umas escadas que nem merecem esse nome, e uma passagem por mar só possível de quando em vez), tem sido poupada aos carinhos dos “mata-praias”, aqueles que, com a sua criatividade, me expulsaram da D. Ana, onde eu deixei de pôr os pés quando a “melhoraram”.
E TALVEZ tenha sido a atracção por essa praia, associada ao facto de o cérebro ser uma máquina imparável (que funciona mesmo contra a nossa vontade) que, devido a uma estranha associação de ideias, dei por mim a reler “A Morgadinha dos... Canaviais”! Ora, como se sabe, os “regressos literários” têm dessas coisas: entre uma primeira leitura e as seguintes, especialmente se decorrerem alguns anos entre elas, as vivências que entretanto tivemos fazem com que as obras pareçam novas (ou, pelo menos, diferentes) de cada vez que as reabordamos — e foi esse o caso, em boa parte devido (quem diria?) às recentes eleições autárquicas... e passo a explicar porquê:
O ROMANCE tem duas linhas principais: uma delas é a história de amor entre Henrique e Madalena que, seguindo o padrão dos romances de Júlio Dinis, começa por ser contrariado e acaba a contento de todos.
A outra é a parte política, pois o pai da jovem “morgadinha” é um conselheiro, cinquentão experiente e vivido, que, pela Oposição, concorre às eleições locais. Assim, boa parte do romance gira em torno desse acontecimento (que o autor situa por volta de 1860), remetendo-nos para os dias de hoje, na exacta medida em que a essência do Ser Humano pouco ou nada se modificou, e a dos políticos ainda menos.
Sim, estão lá as idas às tascas para a aproximação ao povo, as obras públicas atrasadas propositadamente até às vésperas das eleições (há até uma nova rua, cujo trajecto é decidido em função dos interesses de um particular e não dos da população), e nem sequer faltam os arboricidas, que cortam as árvores a eito, para desespero de Vicente, o velho herbanário que as viu nascer e crescer, contrastando a sua tristeza mortal com a apatia de uma população amorfa, que «aceita tudo e mais um par de botas».
Ora é a essa população adormecida que Júlio Dinis dedica duas dezenas de amargas páginas de antologia, intercalando a fala de narrador com as suas opiniões pessoais, no capítulo em que narra as peripécias ocorridas quando chega a hora da verdade:
O acto eleitoral decorre por freguesias, sendo os eleitores chamados um por um, e pelo seu nome. Mas aquilo começa mal, porque os de Pinchões (a quem cabia votar primeiro) não há meio de aparecerem, lançando a confusão entre os presentes. Acabam, no entanto, por chegar, tarde e a más horas (capitaneados pelo cacique lá da terra, o morgado Joãozinho das Perdizes), trazendo todos eles no bolso «um oitavo de papel-almaço dobrado, no qual estava escrito um nome: o nome de um homem que eles nem sabiam se existia no mundo»... e que era, como habitualmente, o candidato do Governo.
Mas, de súbito, há um “volte-face” (que aqui não vou revelar, porque até já contei demais...), e toda aquela gente muda de voto — não por consciência própria, mas porque assim o ordena o manda-chuva.
JÚLIO DINIS, um liberal que sabia muito bem do que falava, não se priva de fazer considerações penosas em relação à ignorância e apatia do povo português do seu tempo, que atribuía àqueles a quem isso interessava, e cujos émulos são, actualmente, os políticos que, durante um ou dois dias a seguir às eleições, choram lágrimas de crocodilo pela elevada abstenção — ao mesmo tempo que nada fazem para a minorar.
Pois é, António Aleixo tinha toda a razão quando lhes atirava em cara:
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«Vós que lá, do vosso império
Prometeis um mundo novo
Calai-vos, que pode o povo
Querer um mundo novo, a sério!»
Etiquetas: CMR, Correio de Lagos
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