Grande Angular - Duas ditaduras
A segunda vem de mais perto. De Moscovo, pois claro, onde um ditador minúsculo percorre corredores imperiais e atravessa portas colossais, com enormes porteiros e soldados gigantescos, em gestos de autómatos e que apenas aumentam o ridículo do pretenso imperador. Este último, a passo saltitante, mas com aparência de agilidade, aproxima-se de um pódio, numa sala imensa, preenchida com centenas de cadeiras arrumadas e ordenadas, com quase só homens, títeres ungidos, vestidos da mesma maneira, hirtos, aprumados, de fato escuro e gravata a condizer, de caras fechadas sem sorriso nem vontade, só com esgar obediente, a aplaudir ao mesmo tempo, com os mesmos gestos mecânicos. Num cardume, há mais liberdade.
Naquelas salas imensas, preparadas para reduzir a gente, criar a ilusão do poder, fingir a majestade do colectivo, simular a grandeza dos bens e a pequenez das pessoas, encena-se a liturgia do totalitarismo, como poucas vezes aconteceu na história. Aquelas cerimónias revelam as mais sérias advertências contra a humanidade, sobretudo contra a democracia e a liberdade. Uma coincidência seguramente não casual: em ambos os casos, o poder não é apenas do Estado e da força militar, é também o do ditador, do líder indiscutido e não eleito. Outras coincidências não escaparam. Ambos os países se dizem ameaçados. Ambos apelam à sua história e ao seu grande passado, para legitimar o renascimento actual. Ambos entendem que são imprescindíveis ao mundo: até agora, a Rússia pelos recursos naturais e a China pelo trabalho industrial. Mas, a partir de agora, pela força militar, pela vontade imperial e pela predisposição para usar a arma nuclear.
É impossível saber se estes dois homens e seus países alguma vez serão aliados sérios e duráveis, se conseguirão partilhar o mundo ou parte dele, se poderão ser capazes de afrontar todos os outros, poderosos ou não. Há quem pense que uma aliança séria e consistente entre estas duas potências é impossível e que qualquer aproximação temporária resulta sempre em desastre. Até nos tempos da primeira grande aliança comunista, com Estaline e Mao no poder, a amizade durou pouco, a cumplicidade foi sonho de breve duração, apesar de ter sido de terror para a Europa e a América. Ali perto, a Índia e o Japão constituem outros polos asiáticos também poderosos. E as Coreias não se podem esquecer. Certo e seguro, para já, é que as duas ditaduras conseguem condicionar o mundo inteiro, intimidar os vizinhos, ameaçar as nações que entenderem e criar uma crise económica à escala planetária quase sem precedentes.
Curiosamente, Putin e Xi, assim se chamam os dois ídolos, entenderam ser necessário recordar aos seus e ao mundo que defendiam as suas pátrias, não aceitavam ordens, não obedeciam a poderes estrangeiros, fariam tudo o que fosse necessário para defender os seus interesses, que poderiam utilizar a força armada quando assim o entendessem e que não abdicariam nunca do uso da arma nuclear. Mais claro não poderiam ter sido.
Que não sobrem dúvidas: estão ali, naquelas imagens de ditadores quase sagrados, os maiores riscos de guerra, os maiores inimigos da paz mundial, as maiores ameaças contra a democracia e a liberdade. Estão ali as principais e mais letais armas contra as repúblicas de cidadãos, de homens e mulheres livres e iguais, de ideias que se exprimem, de acções e de gestos que se escolhem, de sonhos individuais que se realizam e de promessas que se cumprem. Estão ali os principais inimigos dos direitos humanos, da dignidade individual e da liberdade de pensamento e expressão.
Em pouco mais de uma década, o mundo mudou. Para nunca mais voltar a ser o que era no fim do século XX. Agora, novamente, a democracia está em recuo. As ditaduras políticas, militares ou religiosas na ofensiva. Os equilíbrios que se conheciam desapareceram, novos estão em preparação. Regressa-se ao tempo dos blocos, agora com nova configuração. Esta fase de transição é perigosa. A cada novo episódio surge nova ameaça. As duas grandes ditaduras tiveram já alguns êxitos, nomeadamente abriram divisões dentro da Europa e das Américas, onde encontraram mesmo admiradores. Souberam aproveitar as fragilidades e os erros do mundo capitalista e democrático. Muitos se convenceram, do lado de cá, que aprofundar o comércio e a colaboração com aqueles dois países era suficiente para os amarrar ao mundo da cooperação internacional e do equilíbrio de paz internacional. Assim agiram. Até ficarem nas mãos da Rússia para os recursos naturais, especialmente gás e petróleo, mas também cereais. E nas mãos da China, para toda a espécie de trabalho industrial e para a aquisição da dívida pública de quase todos os países ocidentais. É difícil ver, com precisão, as alternativas. Todas têm defeitos e riscos. Mas as vias seguidas foram talvez as que mais expuseram debilidades do ocidente.
No novo desenho do mundo, em curso, é errado pensar que os blocos já estão definidos. Grande parte das Américas, a África e a Ásia, assim como o mundo islâmico, estão sob influência, sedução, atracção e conquista das duas grandes ditaduras. Também nestes continentes, a democracia ocidental e o capitalismo estão em recuo, defrontados e cercados pelos regimes totalitários, claríssimos nas noções de poder, de Estado, de força militar e de imperialismo.
Não tenhamos dúvidas. O que está em causa é a democracia. E a liberdade.
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Público, 22.10.2022
Etiquetas: AMB
1 Comments:
Exmo. Sr. Doutor Democrata António B.
1.º - Onde será possível tirar o Curso de Democrata?
2.º - Qual a Entidade Certificadora que atesta a qualidade de Democrata ou de Ditador a cada ser Humano?
Com os melhores cumprimentos,
atenciosamente
José Ditador
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