Grande Angular - O perdão, o castigo e a desculpa
Por António Barreto
É o pior que pode acontecer: confundir o perdão e a desculpa. Neste caso, a Igreja, uns Bispos, um grande número de padres e outros poderão ter perdão, o que é um assunto da hierarquia, dos fiéis, das vítimas e dos familiares destas. Mas não têm desculpa, e este assunto pertence à sociedade e às instituições. E se não têm desculpa, merecem castigo.
A Igreja pode suspender ou expulsar Bispos, Padres e outros. Mas não os pode castigar pelos crimes cometidos. Esta última função é das instituições. Aquilo de que se trata é de crimes, não de divergências religiosas, nem de polémicas litúrgicas. A Igreja é conivente, os arguidos são os padres.
Os crimes foram vários. Abuso sexual de menores, violação, cumplicidade e encobrimento. Nenhum destes crimes merece o perdão da sociedade, muito menos desculpas. O encobrimento, em particular, que atingiu uma dimensão considerável.
Apenas uma muito pequena parte dos crimes aparece neste relatório. Em circunstâncias proporcionais, menos do que em muitos outros países, como os Estados Unidos, a Irlanda e a França. A Igreja não ajudou. Os meios e o tempo foram escassos. Os arquivos mantiveram-se excessivamente fechados. Já houve sacerdotes, membros da comissão e fiéis que declararam, sem hesitar, que tudo o que foi desvendado fica muito aquém da realidade. Se esta comissão parece ter cumprido o seu dever, já a Igreja está muito longe de o ter feito.
Sabemos, todavia, que a natureza do regime político e a liberdade de expressão não foram variáveis importantes. Na verdade, estes crimes praticados na Igreja e por eclesiásticos, durante setenta anos, tanto o foram durante a ditadura, como na democracia. Além disso, o clima de frugalidade e de repressão sexual, como era antigamente, e o de permissividade e de exibicionismo, como é agora, conviveram igualmente com estes crimes.
Uma primeira lição a retirar é a de que a Igreja, por si só, não é capaz de pôr um termo a estas práticas e castigar os seus autores e responsáveis. Há muito que a Igreja sabia. Há muito que “todos sabiam”. Mas ninguém tinha provas. Nem queriam ter.
Uma segunda lição, ou conclusão, é a de que a Igreja ficará com o encargo de tratar das questões internas, da liturgia, da suspensão, da expulsão e da prevenção, mas depende da justiça e das instituições uma acção mais eficaz e mais justa: legislar, castigar, prevenir e publicitar. Mas a Igreja tem também de estar consciente de que o seu silêncio é o pior incitamento ao crime e à prossecução destes actos. Quer isto dizer que deve, também para efeito internos, colocar um termo à ocultação, à desculpa e à cumplicidade.
O que podem os cidadãos, as instituições e as autoridades fazer para ajudar a Igreja a tratar destas questões? Antes disso, é preciso que a Igreja aceite ser ajudada e queira resolver e prevenir. Se assim for, às instituições e aos cidadãos compete sobretudo a função de legislar, prevenir, julgar e castigar. E demonstrar que um crime cometido na Igreja tem um valor diferente do mesmo crime perpetrado na sociedade.
O que podem fazer os fiéis para ajudar a Igreja a evitar a perpetuação deste problema? Ter mais voz, participar nos assuntos da congregação, sem pensar que está a pôr em causa a fé. É como na política: sem a pressão dos fiéis e sem a participação dos crentes, a Igreja não se emendará. Talvez fosse possível, há séculos, manter o silêncio e a passividade. Hoje, já não é. Os costumes mudaram. As liberdades mudaram. A consciência cívica mudou. As solicitações multiplicaram-se. As vocações estão em crise fatal (pelo menos nos países ocidentais). A prática religiosa também.
É verdade que a Igreja abriu portas e gavetas. Ou antes, entreabriu. Esperemos que faça mais, muito mais. Esperemos que os fiéis exerçam os seus direitos e não tenham receio de enfraquecer a Igreja com a exigência da verdade e da justiça. Pelo contrário. Se a Igreja quer sair desta história com alguma força, não será com ocultação que o conseguirá.
A Igreja fez muito, ao longo dos séculos, por Portugal, pela Europa e pela cultura ocidental. Devem-se-lhe identidade, valores, artes e serviços incontáveis. Até para a separação de Deus e de César, ou a distância entre o Livro Santo e a Constituição, o cristianismo e a Igreja católica foram mais longe do que outras crenças. É uma história sólida. Os tempos modernos e o sexo estão a destruir esse património. E a arredar a Igreja para uma despensa de velharias. Quando não para uma cave de torturas. A Igreja está obrigada a pensar e a reformar-se de modo a poder continuar a prestar serviços aos cidadãos. Aliás, se houver reparação das vítimas, é à Igreja que compete suportar os encargos, não ao Estado.
Nem sempre, nos últimos séculos, a Igreja portuguesa se ilustrou por um contributo marcante de bondade, de justiça e de igualdade, apesar de se considerar sempre fiel a esses valores. Mas a verdade é que, desde o fim da ditadura e do início da democracia, a Igreja brilhou pelo seu papel moderador e agregador. Apesar do jacobinismo reinante e do anticlericalismo sempre em moda, o balanço da acção da Igreja é positivo. Agora, está em causa este passado recente. É incerta a possibilidade de ser útil ao país e aos cidadãos, não apenas aos seus fiéis.
O que pode fazer a Igreja para retomar o seu papel importante e moderador na sociedade portuguesa? Nada se fará se for só na Igreja portuguesa. Se não houver o resto, a começar pelo Vaticano, nada será feito aqui. Mas se a Igreja souber castigar, sem desculpar, então teremos esperança. Mais ainda, se a Igreja entregar à Justiça o que à Justiça pertence.
Será que a justiça portuguesa, tão tíbia e ineficaz perante casos difíceis, está à altura de avaliar e julgar dezenas de padres e uns tantos Bispos pelos crimes de abuso sexual de menores ou encobrimento? Poderá a justiça estar à altura dos outros casos? É que, evidentemente, na Igreja, não há só abuso de menores. Há também os abusos, o assédio e as violações de adultos. Sem falar nas numerosas instituições sociais e equiparadas, colégios privados, internatos, organizações desportivas e militares, lares, associações de juventude e outros. Sem esquecer, evidentemente, que é no seio da família que ocorre a maioria de abusos e de violência, sexual e de género, de menores e de adultos. Verdade é que nem este alargamento de âmbito pode servir, como já há quem o tente fazer, para dissolver as responsabilidades da Igreja e dos padres. Nem a visibilidade titilante dos crimes da Igreja deve permitir pensar que não há mais. Mas há. Muito mais.
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Público, 18.2.2023
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