20.8.23

Grande Angular - Antes que seja tarde

Por António Barreto

Acudir a tempo e horas ou não chegar tarde é uma das principais exigências de várias profissões. Como dos bombeiros e dos médicos, por exemplo. O tempo e a oportunidade são factores essenciais para evitar o desastre, mas também podem ser a sua principal causa. Por melhores que sejam as intenções, tudo cai por terra quando não se chega a tempo. Tentar o que quer que seja já fora de horas é inútil, mesmo por vezes prejudicial, dado que uma tentativa falhada agrava a condição. Não perceber a tempo é um convite à desgraça.

 

Tudo o que precede aplica-se à política e à gestão do espaço público e das instituições. Política, economia e sociedade dependem do tempo e do momento. Chegar tarde à inflação ou à doença, não chegar a tempo às migrações ilegais e às situações de conflito social, podem ser suficientes para que tudo se agrave e se torne mais difícil, até mesmo impossível, com más consequências para os cidadãos e a comunidade.

 

O actual governo, o Parlamento, o Presidente da República e as instituições, numa palavra, as autoridades ainda têm tempo (e meios) para resolver os actuais problemas mais críticos, ainda podem acudir ao que parece ruir todos os dias. É preciso que queiram, que estejam dispostos a arriscar, que não considerem prioritárias as suas vidas pessoais, que não acreditem em mitos ideológicos, que não se sintam prisioneiros de correligionários e que não estejam cativos de paixões menores. Nada disto é fácil, mas também nada é impossível.

 

As divisões dentro do Partido Socialista não parecem ter a gravidade que se lhes atribui. A competição, que vai ser feroz, não é pelo presente, mas sim pelo futuro. A opinião pública parece desafecta do actual governo, mas não necessariamente da actual solução parlamentar. O Partido Social Democrata ainda não parece estar à altura da alternativa, se é que algum dia estará. Do Chega vem muito barulho por pouca coisa. Dos outros partidos não é mesmo de esperar nada. Apesar da conflitualidade crescente, o Presidente da República, sem projectos para depois de terminado o mandato, não parece interessado em forçar uma ruptura insanável. A União Europeia vê Portugal com bons olhos, desde que não incomode. Há meios financeiros que suportem uma acção enérgica. A rotina e a imobilidade favorecem o Partido Socialista e o Governo. Mas prejudicam o país. E é provável que a perturbação eleitoral e a dissolução sejam pelo menos tão nefastos quanto a estabilidade ou a estagnação. É um dilema clássico: os termos da alternativa são ambos maus. E de ambos sofrerá a população.

 

A solução está evidentemente em prosseguir e manter a estabilidade, mas retomar a iniciativa e reformar. Em primeiro lugar, a recomposição do governo. Sabemos que é um tique dos primeiros ministros: não ceder! Este defeito transformou-se numa virtude, o que é um erro crasso. Um primeiro ministro que “defende os seus”, que “protege” os colaboradores, que “não dá o braço a torcer” e que não “faz a vontade dos detractores”, passa, nas crónicas medíocres, por um herói. Na verdade, é um pusilânime sem ideias nem autoridade. Toda a gente sabe que pelo menos meia dúzia de ministros e mais ainda secretários de Estado não estão à altura, não são capazes, enganaram-se no ofício, ficaram prisioneiros de causas menores e não conseguem arranjar colaboradores capazes. Ou simplesmente não têm jeito. Toda a gente sabe que estão nesse caso os responsáveis pelas infra-estruturas, pela Saúde, pela Educação, pela Justiça, pela Agricultura, pela Habitação…. Insistir no absurdo acaba sempre em drama ou tragédia.

 

Dizem os comunistas que “o importante são as políticas, não as pessoas”. Tal não é verdade, são tão importantes umas como outras. No caso presente, é tão evidente que é necessário mudar e alterar, que por vezes somos levados a pensar que o exercício do poder político tem efeitos negativos e perigosos na audição, na inteligência e na sensibilidade. E na visão.

 

Ficará na história quem decida tomar em suas mãos a grande reforma da Justiça, que demora anos a levar a cabo, que terá efeitos durante décadas, que será responsável por uma profunda mudança social e que dará nova vida às ideias de democracia e de liberdade, tal como as conhecemos em Portugal. Quem tome a responsabilidade de avaliar os seus nós e defeitos e de criar as condições para uma mudança fundamental de recrutamento, de disciplina, de procedimentos, de legislação e de organização da Justiça prestará um tal serviço ao país que os séculos não o esquecerão.

 

O primeiro ministro, ministro ou dirigente que consiga recuperar as rédeas, os meios, os recursos e a vocação do Serviço Nacional de Saúde, pondo termo à sangria de pessoal, à ineficiência, à desigualdade social, à miséria de meios e à ausência de previsão ficará com nome e memória comparáveis aos fundadores do SNS.

 

Será recordado, por décadas a vir, aquele que perceba a crueldade dos serviços púbicos, que conheça a injustiça das grandes administrações e que tenha compreendido o desprezo com que os cidadãos são tratados em tantas instituições. Ninguém esquecerá aquele que saiba voltar a dar vida e energia aos transportes públicos, especialmente à rede de comboios, conciliando eficácia com igualdade e com humanidade. Ficará conhecido, por uma população grata, quem dê estabilidade ao sistema educativo, quem trate da permanente algazarra escolar e quem volte a dar honra e dignidade ao ofício de docente.

 

Mais do que pela imprensa, será lembrado pelos corações e pelos espíritos das populações quem consiga conter a corrupção, dominar o nepotismo e contrariar o privilégio partidário.

 

E mais haverá. Mas o primeiro ministro sabe. E toda a gente sabe. A imobilidade já só é defendida por quem tem medo e respeitinho. Há heróis na história que souberam resistir às campanhas adversas, aos inimigos insidiosos e aos ataques injustificados. O problema é que não estamos numa situação dessas. Poucos são os que atacam o primeiro ministro, o governo ou o partido. Mas muitos são os que já não acreditam nele e neles. 

Público, 19.8.2023

 

 

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