27.4.24

Grande Angular - A História feita crime

Por António Barreto

Vários mestres nos advertiram: “Não devemos proclamar glórias que não são as nossas”! O tema é inspirador. Não nos devemos gabar do que outros fizeram bem. Nem arrepender do que outros fizeram mal. É verdade que podemos sentir emoção, quando pensamos nos feitos de portugueses ao longo de oito séculos. Mas os feitos são deles, não nossos. E os crimes deles a eles pertencem, não a nós. Imaginar que “nós” somos todos, Vasco da Gama, Luís de Camões, Fernando Pessoa e nós próprios, é de uma presunção estúpida que só a gabarolice nacionalista explica. Pensar que “nós” somos todos, os que queimaram aldeias e escravizaram populações, é de uma tal patologia narcisista que custa a entender.

 

Não espero fama, nem elogios, por ter descoberto o caminho para a Índia, nem conquistado territórios em África. Como não me gabo, nem me queixo, de ter escravizado e assassinado gente por todo o lado, sobretudo em África. Não me vanglorio de ter escrito “Os Lusíadas”, nem ter inventado o vinho do Porto. Não peço desculpa, nem perdão, pelo que outros fizeram de mal: pilharam, roubaram, escravizaram e assassinaram. Também não me sinto vaidoso por ter conquistado, pelo menos duas vezes, a independência de Portugal. Nem me sinto orgulhoso por ter colonizado, desenvolvido, modernizado e educado gentes e povos. Não fiz nada disso, outros fizeram. Não me queixo, por não ter tido sofrimento, outros tiveram. A dor por procuração é tão inconveniente quanto o orgulho por recordação. É mau princípio o de chorar culpas que não são as nossas. Ou devolver o que não roubámos. Não peço perdão a quem nunca fiz mal, nem pelo que não fiz. E não me gabo do bem que outros fizeram.

 

O que os portugueses de outros tempos fizeram e de que tanto se fala hoje inclui vários géneros. Uns actos eram “o que se fazia”, muitos eram “as regras do jogo” ou até glórias, outros já eram crimes na altura. E também há obras que começaram por ser glórias e são hoje crimes. Com o tempo, é fácil o bem transformar-se em mal e o mal no seu contrário. Confundir os géneros, tentar usar o mal e o bem dos outros, promover ou rebaixar hoje o que foi feito há séculos, disfarça, por regra, ambições contemporâneas, maus instintos morais e apetites políticos excessivos. Quem quer julgar, hoje, os reis e os escravos de há séculos, quer hoje qualquer coisa. E não se trata apenas de bons sentimentos: quer poder, bens e poleiro.

 

Há décadas que, de vez em quando, a questão das culpas históricas e dos erros de outrora, assim como do perdão de hoje, estremece a crónica dos dias. Por vezes, trata-se de bons sentimentos, de uma espécie de candura histórica. Outras vezes, por parte dos contemporâneos, é nem mais nem menos do que uma nova forma de extracção: as desculpas ajudam a obter um lugar na lista de compradores de minérios ou vendedores de armas. Umas vezes ainda, a questão é a da vingança útil, isto é, da oportunidade para obter recompensa e poder, invocando antepassados e compaixão, quando o que está em causa são ambições contemporâneas. Finalmente, para todos, os que querem pedir perdão e desculpar, os que exigem recompensa e indemnização, os que recordam um passado de dor e os que evocam grandeza nacional, de todos temos esta espécie de busca desavergonhada de clientela política. Pouco mais é do que o abuso dos reflexos irracionais do tribalismo, do nacionalismo e do racismo. Infelizmente, neste confronto descabelado, não há inocentes. Mas há vítimas: os cidadãos que agradecem alguma racionalidade na vida pública.

 

O mais curioso é ver que as questões práticas não têm respostas. Ou têm-nas de mau pagador e cínico cliente. Pedir perdão a quem? Aos africanos? Aos asiáticos? Aos índios? De quê? Porquê? Não conheço país que não tenha sido, pelo menos uma vez na história, conquistado ou conquistador, colónia ou metrópole. Como não conheço país, povo, Estado ou nação, que não tenha escravizado, não tenha vivido com escravos ou não tenha vendido os seus. Não conheço povo, país, Estado ou tribo que não se tenha feito graças à luta, ao domínio, à servidão ou à conquista. Será que toda a gente tem de pedir perdão a toda a gente? Se os portugueses têm de pedir perdão aos africanos, aos mouros, aos árabes, aos índios, aos indianos e outros asiáticos, quem nos pede perdão a nós? 

 

Pedir perdão a quem? Aos Estados? Às pessoas em abstracto? Às famílias de descendentes de escravos? Como distinguir entre quem foi vendido, quem transportou e quem vendeu? Sabendo que muitos escravos foram vendidos por conterrâneos, vizinhos, comunidades rivais, nobres e ricos, notáveis africanos, asiáticos ou árabes, como distinguir entre aqueles a quem se pede perdão e os que devem ser condenados? Supondo que se sabe a quem pagar, Estado, empresa, Igreja, associação, tribo ou família, falta evidentemente definir quem paga. O Estado? Os contribuintes? As empresas? Os milionários?

 

Faz algum sentido exigir, da Grã-Bretanha ou da Universidade de Oxford, a devolução imediata da biblioteca do Bispo de Silves, roubada por uns piratas e uns nobres ingleses no século XVI? Ou exigir a pronta devolução do “Cabinet de Lisbonne”, composto por milhares de espécies, roubado por soldados e cientistas franceses no início do século XIX e actualmente no Museu de História Natural de Paris? Ou os milhares de artefactos religiosos, sobretudo de ouro e prata, saqueados nas igrejas portuguesas pelas tropas e levados para França? Se as autoridades portuguesas entendem tomar iniciativas relativamente aos países que os antigos, em seu tempo, pilharam, têm de começar já por nós e obter a devolução dos bens saqueados em Portugal.

 

Em vez de indemnizar ou recompensar, não se sabe bem quem, nem quanto, o melhor que temos a fazer é receber bem os estrangeiros, os imigrantes em particular. O que é um valor em si, não uma compensação por malfeitorias passadas. Se recebo imigrantes, quero, pelos méritos próprios e não para me reabilitar, conceder-lhes direitos e reconhecer a sua dignidade igual à minha. E exigir a reciprocidade, tanto cá como nos países de origem. Se procuro a paz e a justiça, hoje, quero que os imigrantes sejam legalizados, tenham acesso aos serviços públicos, paguem impostos e beneficiem da segurança social. O que farei porque é aquilo em que acredito, não por ter vergonha pelo que outros fizeram. Porque sei que o tráfico de gente é uma das fontes de crime e violência, lutarei contra os que, nacionais ou estrangeiros, lucram com a ilegalidade, o contrabando e a clandestinidade. E recuso-me pensar que o descontrolo é uma boa política de democracia e de compaixão. Não é. É o contrário.

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Público, 27.4.2024

 

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