8.6.24

Grande Angular - Há liberdade de expressão a mais?

Por António Barreto

É tão curioso que, após 50 anos de liberdade, se discuta novamente e com acidez a questão da liberdade de expressão! Tudo parece ter começado com os limites à liberdade de expressão que, segundo alguns, o Parlamento deveria tolerar aos seus deputados. Mas a questão vem de trás e é velha. E talvez eterna. Nos últimos meses e anos, foram vários os momentos em que o problema se levantou. Umas vezes, por causa dos segredos de Estado. Outras, pela inconveniência das instituições. Outras ainda porque não se deve “dizer mal” de alguém. Ainda há as coisas que não se devem dizer porque “fica mal”. Ou porque envolvem preconceito. Ou porque traduzem opiniões mal vistas por certos grupos da sociedade. Sem falar nos segredos de empresas, de marcas e de contratos. A todos estes casos, a resposta adequada é não! Nada justifica a repressão da liberdade de expressão.

 

Os “limites à liberdade de expressão” não são limites à liberdade de expressão. O que alguns designam por “limites” deveriam ser castigos ou punições por calúnia, mentira, obstáculo à justiça, difamação ou erro intencional. Nada disso deveria ser punido por excesso de liberdade de expressão, mas sim pelos méritos ou deméritos próprios. Caluniar e ofender outrem, afirmar falsidades sobre alguém, errar propositadamente para prejudicar alguém, enganar outras pessoas, ludibriar a justiça e quaisquer actos semelhantes devem ser punidos pela legislação sobre direitos humanos, sobre o dever de respeito pela verdade, sobre a calúnia e a difamação e sobre os danos causados a outrem, não por uso da liberdade. Desvendar factos da vida pessoal e privada de alguém não é abuso da liberdade de expressão, é, isso sim, atentado ao bom nome e à reserva da vida pessoal. Mesmo a calúnia, um dos casos mais difíceis de avaliar, deve ser punida por prejudicar alguém, não por uso da liberdade de expressão.

 

A liberdade de expressão é um bem, uma virtude, um direito, uma qualidade que só poderá ser reprimida por um bem, uma virtude, um direito ou uma qualidade de valor superior. Não se vê o que este poderia ser. A pátria? A família? O poder? As empresas, os partidos, os clubes desportivos? Não vejo quem represente valores superiores aos da liberdade.

 

Além desse facto simples, outro elemento contribui para o estatuto especial da liberdade de expressão. Esta também é instrumental, isto é, condição das outras liberdades, meio de luta por outros direitos. Sem liberdade de expressão, não é possível obter e lutar pelos direitos e liberdades dos cidadãos. É a liberdade de expressão o mais forte instrumento de luta e de respeito pela democracia.

Recentemente, a liberdade de expressão tem vindo a ser invocada a propósito de preconceitos. Como é evidente, os preconceitos e as aleivosias ficam com os seus responsáveis. As generalizações preconceituosas são defeitos de inteligência entre os piores que se conhecem. Os Judeus isto, os Negros aquilo, os Muçulmanos aqueloutro. Ou os Brancos, já agora. Para não falar dos Turcos, dos Americanos, dos Chineses e dos Ciganos. Além destes grupos nacionais ou étnicos, há ainda os homossexuais, as mulheres, os burgueses, os comunistas, os fascistas, os alentejanos e os galegos. Não faltam grupos sobre os quais não haja regularmente generalizações estúpidas, preconceitos vis e vociferações imbecis. Temos de viver com isso, se queremos viver com a liberdade de expressão. Ninguém precisa de licença para insultar, nem sequer para defender a virtude. E ninguém tem autorização para limitar a liberdade de expressão de outros. Nem sequer para defender o bem.

 

A admitir limites, o grande problema consiste em determinar as permissões e as proibições. Quais são as generalizações admitidas e as condenadas. Brancos? Pretos? Amarelos? Ou então burgueses, fascistas, nazis ou comunistas? Em segundo lugar, ainda mais difícil, quem define os limites? Políticos? Polícias? Igrejas? Professores? Sindicatos? Juizes? Jornalistas? Terceiro, onde se estabelecem as regras? No Parlamento? No Governo? Na presidência? No partido? Nos jornais? Na loja? Na igreja?

 

As respostas a estas perguntas são, em geral, as mais vagas que se pode imaginar. Diz-se que a definição pertence ao bom senso e à sensatez. Aos costumes e à moral. À opinião pública e outras vacuidades. A verdade parece ser mais simples e mais difícil. Não há limites para a liberdade de expressão. Quem usa da liberdade de expressão para fazer mal, mentir, caluniar e prejudicar, deve ser julgado, contrariado e condenado por isso mesmo, pelo mal que faz, pela mentira, pela calúnia e pelo prejuízo, não pelo “abuso” da liberdade de expressão. Se eu der voz a preconceitos e generalizações, devo ficar com as consequências, mas não se vê quem possa definir as generalizações aceitáveis e as condenáveis. Se alguém disser “não gosto de ciganos”, “não gosto de capitalistas”, “os monopolistas devem ser banidos”, “os trabalhadores são preguiçosos” … que fazer? Mandar prender? Processar em tribunal? Quem se queixa? E se alguém se referir negativamente aos Israelitas ou aos Palestinos? Além de se proibir dizer “mal”, também se deve proibir dizer “bem”? Há limites? Fronteiras? Quem as define? Quem traça os critérios?

 

Quando se fala em liberdade de expressão, termos e conceitos muito em voga são os que consistem em generalização social, biológica, racial e étnica. Como definir os limites e as fronteiras? O que é ou não é aceitável? “Os americanos (ou chineses, ou russos…) querem mandar no mundo”! Permitido? Os “alemães ocuparam a Europa”, ou “os russos invadiram a Ucrânia”. Pode dizer-se? Os “israelitas massacraram palestinos” ou os “palestinos assassinaram judeus”?  Pode afirmar-se? Os “vietnamitas derrotaram os americanos”. Pode dizer-se? Os “americanos (ou russos, ou chineses…) são imperialistas”. Pode declarar-se?

 

Quem contesta expressões do género: as tradições imperialistas dos ingleses, colonialistas dos portugueses, despóticas dos russos, autoritárias dos chineses, conquistadoras dos árabes, fanáticas dos islamistas e opressoras dos católicos, entre tantas outras? É tão ridículo condenar estas expressões, como considerá-las verdadeiras. Os portugueses conquistaram, colonizaram, escravizaram, dominaram e exploraram milhões de indígenas de África, das Américas e da Ásia. Pode dizer-se? Mas também o fizeram, com a mesma ou maior intensidade, entre outros, os ingleses, os chineses, os árabes e os russos. O que se pode ou deve dizer?

 

Há muita gente que gostaria de estabelecer, para os outros, cânones e códigos de conduta. Há demasiada gente que tem uma concepção parcial da liberdade de expressão. Quem sabe se também de outras liberdades e outros direitos.

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Público, 8.6.2024

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