17.2.06

Acontece...

A tempo de apanhar os comboios (*)

NOUTRO dia um “amigo” encontrou uma crónica minha aqui no “Ripa” e telefonou-me a saber porque é que eu escrevia num jornal de distribuição gratuita. A pergunta não era inocente, claro. O que esse “amigo” queria significar é que só escreve para um jornal oferecido, quem não tem mais nada para fazer na vida. Topei.

Não sei o que vai o meu leitor fazer desta crónica e deste jornal quando acabar de o ler. Dobrá-lo e guardá-lo com cuidado ou atirá-lo para a primeira caixa de lixo? Não sei. E, para ser sincero, não me interessa absolutamente nada. Quero dizer com isto que as palavras que estou a escrever neste momento não serão diferentes se forem lidas e depois para o lixo, ou lidas e levadas para um arquivo. O que me importa é a sua leitura. Uma crónica só serve para o momento em que é lida (exactamente este momento de ligação entre nós dois, leitor) e para pouco mais além dele. Poderá durar o tempo de uma segunda leitura, mas o que vale mesmo é o primeiro encontro, é a primeira entrega dos conteúdos que ela transporta.

Porque o essencial é ser lido. O que verdadeiramente importa, no jornalismo, é chegar aos leitores, aos ouvintes, aos telespectadores. Um velho jornalista que foi meu chefe de redacção no “Diário de Notícias”, um grande editor que se chamava Sebastião Cardoso, ensinou-me uma lição que nunca esqueci. Uma noite regressei de uma reportagem e demorei-me um bocado a pensar na forma de a começar. Quando já estava a escrevê-la, chegou-me o contínuo a pedir a prosa: o chefe diz para entregar já. Reagi com impaciência, mandei-o embora e continuei martelando furiosamente nas teclas. Cinco minutos depois voltou o pobre homem: o chefe está zangado. Quer isso já. Impaciente, saltei por cima de alguns pormenores, fechei o artigo e entreguei-o, de mau humor. Mais tarde, já tranquilo, fui conversar com o velho senhor. E ouvi-lhe esta frase exemplar: “Pode o meu amigo redigir a mais brilhante crónica, a melhor reportagem de sempre, mas se elas não forem entregues a tempo de apanhar os comboios não servem de nada.”

Era no tempo em que os jornais de Lisboa seguiam para o resto do país nos primeiros comboios da manhã. Trabalhar “a tempo dos comboios” era uma forma de gíria para significar que a importância última do nosso trabalho era chegar ao seu verdadeiro destino, razão final de tudo: os olhos do leitor. Uma verdade que não morreu, antes se revigorou nos dias de hoje. Agora chama-se-lhe “audiências” em televisão e na rádio (de que serve um programa que não é visto ou ouvido?) e marca a vida e a morte dos jornais.

É por isso que nasceram os jornais gratuitos, uma verdadeira revolução na história da Imprensa. Hoje há jornais grátis em 36 países, com uma tiragem diária de 22 milhões de exemplares que são lidos por mais de 45 milhões de pessoas. A razão deste sucesso estrondoso é simples como todas as boas razões: o preço estava a afastar os jornais dos olhos dos seus leitores. Havia pelo menos 45 milhões de pessoas que, provavelmente, não leriam jornais porque não tinham dinheiro no bolso para os pagar. Eliminado esse obstáculo, o trabalho dos jornalistas podia cumprir a sua missão.

Foi isto, mais ou menos assim, o que respondi ao tal “amigo” matreiro que me perguntou porque estava eu aqui, no “Ripa”. O que não lhe disse, porque achei que não me merecia tal atenção, é um segredo de polichinelo que se diz assim: não há leitores de primeira e leitores de segunda – o que há é jornais bem feitos e jornais mal feitos, jornais interessantes e jornais sem interesse.

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(Adapt. de «Ripa na Rapaqueca» - 17 Fev 06)