Passeio Aleatório (*)
O causídico chamava-se Jean-Anthelme Brillat-Savarin (1755–1826) e teve uma vida preenchida. Nasceu em Belley, uma pequena cidade no sudeste de França, exilou-se nos Estados Unidos e terminou os seus dias em Paris, onde dedicou os últimos anos de vida ao seu tratado, que veio a lume um ano antes da sua morte.
Poucos livros se podem gabar de continuar a ser editados e traduzidos dois séculos depois da sua edição original. Mas a «Fisiologia do Gosto», assim se chama a monografia de Savarin, tem ainda uma honra adicional. É a fonte inspiradora de um grupo de cientistas modernos que se dedicam ao estudo da culinária. Um deles, talvez o mais conhecido, é um carismático físico-químico francês que trabalha no venerável College de France. Entrevistado amiúde pela imprensa parisiense, retratado recentemente na norte-americana Discovery, autor de vários livros muito populares, Hervé This tem no seu laboratório uma cozinha sofisticada. Os seus ácidos incluem vinagre e sumo de limão, e entre os seus ingredientes encontra-se azeite, farinha e ovos.
Hervé This e um seu colaborador já falecido, o húngaro Nicholas Kurti, decidiram há algumas décadas seguir os passos de Brillat-Savarin e ir mais longe no estudo da culinária. Armados de conhecimentos científicos com que o advogado de Belley não sonhava, decidiram estudar os processos físicos e químicos que se desenvolvem na cozinha. Kurti queixava-se de se conhecer melhor a temperatura no centro das estrelas do que no interior de um soufflé. Para ultrapassar essa inferioridade em relação à astronomia, naturalmente intolerável para os gourmets franceses, juntaram-se a um grupo de químicos e iniciaram encontros regulares daquilo a que chamaram Gastronomia Molecular.
Em Portugal, há também um grupo de químicos que tem desenvolvido o estudo e a divulgação da ciência da cozinha. As engenheiras Margarida Guerreiro e Paulina Mata, por exemplo, têm dinamizado «A Química é um laboratório», actividade desenvolvida no Pavilhão do Conhecimento e em diversas escolas.
Como seria de esperar, os estudos têm confirmado algumas das recomendações tradicionais, mas desmitificado muitas outras. Uma das novidades da culinária parisiense inspiradas nos trabalhos de Hervé This é o ovo cozido a 65 graus. Aparece já com essa designação nos menus de alguns bons restaurantes.
A ideia é elementar para um químico. A duração da cozedura de um ovo é um parâmetro que apenas interessa pela temperatura alcançada no seu interior. Os tradicionais dez minutos em água fervente cozem perfeitamente a clara e a gema, mas produzem um ovo demasiado ressequido, pois todo ele atinge os 100 graus. Na realidade, o tempo é uma variável que não interessa. Colocando um ovo num forno à temperatura adequada e deixando-o aí o tempo necessário para todo o seu interior atingir essa temperatura, dez minutos ou duas horas produzem o mesmo resultado. E o resultado ideal obtém-se a 65 graus. Experimente o leitor com um púcaro cheio de água e um termómetro para controlar a temperatura. Os gastrónomos moleculares franceses prometem-lhe um ovo como nunca comeu.
(*) Crónica de Nuno Crato, adapt. do «Expresso»
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4 Comments:
Texto interessante!!!
Li há tempos que o Adrià do El Bulli, 3 estrelas Michelin, tem um laboratório em Barcelona, onde durante 6 meses usando a ciência cria os pratos que apresenta. Marque com pelo menos dois meses de antecedência, prepare o cartão de crédito e, se ainda não foi, vá.
É sublime e, se a vida não tiver estas pequenas loucuras, não vale muito a pena viver, pois não?
Com a devida vénia ao autor do blog, mais um excelente texto do Nuno Crato.
Já agora, um frango cozinhado a pelo menos 70º pode não ser o melhor do mundo para pelo menos não gripa nimguém
Comparativamente com a versão em papel, no Expresso, os textos aqui ganham muito com a inserção de imagens.
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