1.12.06

DÉFICE MUSICAL

A GRANDE MÚSICA em Portugal tem dias. Por isso, não espanta que se acabe com a Festa da Música e a substituam por Dias da Música. Também não espanta que a excelsa ministra da Cultura diga que «era um disparate de gestão gastar-se uma percentagem do orçamento absolutamente exorbitante em três dias». Um disparate – disse ela. O que me fez lembrar aquele boneco do Contra-Informação que era a caricatura de outro ministro da Cultura que passava o tempo a dizer: «Que disparate!». Um velho pesadelo hilariante que me perturbou o sono naqueles dois anos que passei na moribunda Fundação de São Carlos tentando iludir-me a mim próprio até perceber que estava a ser ludibriado.
Sete anos durou a Festa da Música. Tantos quantos o pastor Jacob serviu Raquel, embora a expensas de Labão, que «em lugar de Raquel lhe deu a Lia». Vem a propósito o soneto de Camões porque, também neste caso, em vez da bela Festa vão dar-nos Dias. A Festa era a Raquel de muitos milhares de melómanos que, como Jacob, só a queriam a ela. Estavam dispostos «a servir outros sete anos». E mais serviriam, «se não fora para tão longo amor tão curta a vida!». É verdade, senhora ministra: esta vida são três dias. E bem merece, de vez em quando, «um disparate». Mas Labão é forreta. Sobrepujado pela «Colecção Berardo» e deprimido pela obsessão do défice, procura esconder a economia destrutiva do avarento sob o manto diáfano da parcimónia criadora do campónio.
Esta era uma Festa genuinamente popular, onde imensa gente, sobretudo jovens, ia ouvir grande música e ver grandes músicos pela primeira vez – ou pela única vez ao longo de um ano, já que as outras ofertas, por cá, são poucas, caras e com acesso muito limitado pela lotação das salas. As temporadas de ópera do São Carlos, apesar de serem bem melhores do que no meu tempo, continuam a ser dispendiosas e curtas, os preços dos bilhetes são elevados e a lotação do teatro cabe na cova de um dente. As temporadas de música da Fundação Gulbenkian são um «vício» que sai caro às criaturas remediadas e é quase inacessível para as que não têm cheta. Além disso, é uma instituição privada e não tem obrigação de oferecer bodos aos melómanos pobres. Mas o Estado, tem!
Claro que o mecenato quase não existe em Portugal. Os empresários estão-se nas tintas para a Folle Journée de Nantes transposta para Lisboa. Ouvir As Bodas de Fígaro durante três horas deve ser uma chumbada para eles. Não espanta que a Festa da Música tenha o mesmo destino dos magníficos concertos Em Órbita, quando a PT deixou de os patrocinar. Em 1996, o professor Cavaco perguntava aos alunos: «Devemos subsidiar a ópera, se os indivíduos não vão à ópera e preferem ir ao concerto de Tina Turner?». Eis a resposta. Encerrar o São Carlos daria grande escândalo. Mas a Festa da Música é «um disparate» que só diverte 50 mil «indivíduos». É preciso poupar na Cultura? Corta-se na grande música e acaba-se com a Festa. Viva a Tina Turner! Morra a Castafiore!
«DN» de 1.Dez 06

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5 Comments:

Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Acerca da fraca ambição de muitos portugueses (nestas e noutras coisas), António Vitorino de Almeida dizia, em tempos, que «São os adeptos do Rés-do-chão alto», para quem "não é preciso nada de muito elevado, qualquer coisinha serve..."

1 de dezembro de 2006 às 16:40  
Anonymous Anónimo said...

Vale a pena espreitar o forum do «Expresso» (em www.expresso.pt) com o título «Vamos salvar a Festa da Música».

2 de dezembro de 2006 às 08:12  
Anonymous Anónimo said...

Gostei de constatar que o facto de Alfredo Barroso ser do partido que apoia o governo não o impede de criticar a Ministra da Cultura.

E as farpas ao Carrilho (esse pavão intragável!) também são bem metidas.

Ed

3 de dezembro de 2006 às 13:33  
Anonymous Anónimo said...

Há uma coisa que sempre me fez confusão: como é que os primeiros-ministros mantêm em funções "autênticas encomendas" que só desprestigiam o governo?

Esta "tontinha" da Cultura, o "pintas" da Economia, o "insensível" da Saúde...

Jesus!

6 de dezembro de 2006 às 15:46  
Anonymous Anónimo said...

Em matéria de ministros que "prejudicam mais a imagem do governo do que ajudam", não podemos esquecer-nos do desastrado Jaime Silva (da Agricultura), do trôpego Alberto Costa e do invisível Nunes Correia, do Ambiente.

A ministra da Educação também dá que pensar, pois vê-se que quer o bem da Pátria... mas não era possível ser-se mais desastrada!

M. Rosa

7 de dezembro de 2006 às 10:33  

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