CAVACO NO PARLAMENTO
Por Nuno Brederode Santos
A PRIMEIRA NOTÍCIA que me chegou era alarmante: Cavaco teria pronto um livro sobre os poderes presidenciais. Como muitos outros, evoquei sabedoria antiga: "Somos escravos das palavras que dissemos, mas donos daquelas que calámos." Agrilhoar-se a um exercício académico de tal monta, após um magro ano de mandato, não parecia nem prudente nem sensato. Mas a segunda versão já veio mais tranquilizante: o livro era, afinal, o Roteiros, uma compilação das intervenções do primeiro ano em funções; e os poderes presidenciais eram apenas objecto do prefácio. De uma aventura quase suicidária passávamos assim a um risco político, já pequeno mas ainda assim desnecessário. Enfim, publicado o texto, nem isso. São cinco páginas sobre o primeiro ano em Belém, com considerações sobre os poderes presidenciais, tal como linearmente decorrem do texto constitucional. Nada nele é controverso ou subjectivo. Claro que também nada é criativo, mas esse é o preço mínimo a pagar para que tudo seja, afinal, sensato e prudente. Excepção apenas para esta teimosia venial: "Ao longo do primeiro ano da minha magistratura, a expressão "cooperação estratégica" - que na campanha eleitoral suscitou alguma controvérsia - foi ganhando um conteúdo cada vez mais claro e preciso". Transformada a questão em obstinação semântica, mais vale esquecer.
Claro que, mesmo perante alguma indiferença, houve comentadores mais atreitos a entusiasmos matinais que só viram prodígios nas entrelinhas. Por exemplo, a afirmação do princípio (óbvio) segundo o qual o Presidente não é co-responsável pela governação foi saudada por um como sendo uma "frase assassina". Outro exemplo: a ideia de que a promulgação não implica uma adesão ao conteúdo político do diploma promulgado foi vista por outro como uma "clara" demarcação em relação a um diploma anunciado. Mas isso, já se sabe, releva da legítima defesa contra o tédio.
A verdade é mais prosaica. Cavaco tem um ano de mandato. É cedo para tudo. E a culpa que lhe assiste por ter querido impor, ao fim desse ano, a conclusão prematura de que tudo fizera como prometido na campanha não justifica as fantasias, quer de aduladores quer de desencantados.
Ora foi este Cavaco - humanissimamente perdido na indecisão, pequenino num horizonte que deseja de dez anos, ansioso pela presidência portuguesa que aí vem e hesitante num labirinto em que cada porta que se abre fecha outra - que no dia 25 de Abril falou ao país e ao Parlamento. Não para fazer história ou ensaiar epopeias, mas para cumprir calendário obrigatório e passar, enxuto, por entre as gotas da chuva.
Do seu lugar na mesa, disse sobre liberdade e democracia o bastante para se mostrar ciente de não ser a altura de tentar a grande prosa ou a especulação metafísica.
Sugeriu alterações ao modelo institucional do 25 de Abril, por ver riscos de se cair numa celebração ritual. Mas ele não ignora que também a República tem as suas liturgias e que, na sede parlamentar, não se vê como fazer muito diferente. Nem pretenderia criticar o Parlamento, pois um convidado não diz mal do chá que lhe é servido em casa alheia. Enfim, ele sabe que o dia é pontuado por comemorações populares de raiz local, que não pretenderia perturbar. Portanto, é de admitir que ele se referia a celebrações adicionais, plausivelmente a organizar pela presidência. Não há razões para as recusar a priori. Aguarde-se concretização da iniciativa.
Enfim, quis galvanizar a juventude mais afortunada, para que, no escalamento da sua vida, traga mais fortuna a todos nós. Esqueceu a menos afortunada? Paciência: fica para a próxima.
Importante é que um segundo 25 de Abril já passou, sem grandes molhas. E numa inanidade bem gerida, a fazer alguns consensos importantes. O mais vistoso, aliás, foi o de Marques Mendes consigo mesmo, já que ele tão alegremente se reviu no Portugal apocalíptico de Paulo Rangel, como no Portugal de Cavaco, promissor de radiosas madrugadas.
«DN» de 29 Abr 07
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