A QUADRATURA DO CIRCO
Pesca
Por Pedro Barroso
ESTE CORPINHO não se mantém facilmente. E, apesar de torpes socráticas e maldosas insinuações, eu como, acreditem ou não, noventa por cento de peixe.
Mas, precisamente por isso, tenho um drama. Habituei-me a ser selectivo e a só gostar de peixe muito fresco, bem grelhado, enfim, a coisa como deve ser.
Existem, para isso se conseguir, segredos e tascas que nunca se devem revelar a ninguém, para não passarem a estar cheias e sermos depois prejudicados pela leveza insustentável da nossa bondade.
São locais mágicos de alquimia surpreendente, onde pescadores entram com o balde acabado de chegar do mar e o Gilberto ou o Bolas transformam o conteúdo em maná. Segredos da grelha, do carvão, do lume, dos ventos dominantes, do pingar, do manter o ponto de brasa e circunstância, da simpatia pessoal, da limpeza -nunca demasiada- da grelha, feita com couratos de boas famílias, do momento e a arte da virada, etc.
Mas sobretudo, está bem de ver, o principal segredo está na frescura do animal.
No mar profundo, azul e salgado de que proveio. Na rigidez da carne. No límpido dos olhos. No sangue fresco na guelra. Na escama bem presa ao corpo. No corpo luzidio e teso.
Só de escrever isto já estou a ficar com fome. Um momento…
Voltei.
Acontece que há o drama da poluição no mar. O drama do rodovalho, da dourada e do robalo de cultura. Da sapateira francesa. Enfim. O drama do mercúrio nas águas. O drama das gaitas com que nos andam a enfeitar a vida de morte, todos os dias. O drama dos sítios onde o peixe até será fresco, sim senhor, mas a água é mole, sem vida, lamacenta e quente. E o peixe na conformidade, mole e sem tesura.
Mas há um drama maior da pesca em Portugal.
Eu não me refiro às famosas quotas distribuídas pela CEE. Sim, eu sei. Há as leis que proíbem agora a pesca artesanal ou a forçam a ser feita a mais de duas milhas, a proibição dos alcatruzes do polvo, o rigor das malhas e das multas e outras imbecilidades de armadores e legisladores de gabinete. Gente que, do mar, nem o cheiro!
Ah! E, se me permitem, o preço absurdamente alto do peixe, neste país de litoral e pescadores. Incompreensível.
Mas não é ainda esse o tal problema. Aliás, eu supunha que a grande condicionante ao processo de pesca era a imponderabilidade do mar. Indiscutível. O estado do mar é que determinaria o facto de se poder ou não ir pescar. Mas não. Essa compreende-se. O grande inexplicável enigma é mesmo a folga dos pescadores.
Ao domingo não se pesca, ao que parece, que é pecado. À segunda-feira não se pesca, porque não se pesca à segunda-feira. É a folga, pronto. Acho que deve ser o sindicato do mar, qualquer coisa dessas. Mas se chover e ventar ou puxar mar à terça, pode estar-se dois dias assim, sem se poder sair da barra. Acontece. E quando há clientela sempre pensei eu que tem de se dar um jeito, acelerar um pouco, satisfazer o cliente. Mas não. Na quinta-feira “santa” foi uma espécie de feriado, não foram ao mar. Mas o pessoal afinal é todo religioso?! Estava um dia magnífico! Não sei…
Na sexta-feira… bom… era sexta-feira santa, caramba, está visto que o pessoal não trabalhou. Era feriado.
Por isso mesmo, no sábado de manhã, em plena Páscoa, com a casa a abarrotar de gente para o almoço, o responsável por uma destas tais grelhas de magia que eu não digo, na velha Lagos, estava triste. Não tinha peixe em condições (classificação muito relativa em relação aos carapaus que comi, mas enfim…) pois o pessoal que tinha ido ao mar ainda não tinha voltado. E acrescentava:
- Talvez à noite. Mas como amanhã é domingo… não sei. Eles é que sabem! Eu já nem digo nada…
Por isso,
Senhores pescadores! Imploro-vos! (de joelho no chão):
- Organizem-se! Tenham dó de nós! Furem o esquema! Furem o mar todos os dias!
Os viciados maníaco-compulsivos do peixinho fresco pedem-vos encarecidamente!
Os piscicómanos de todos os quadrantes agradecem-vos o esforço. Vá lá! Corações ao alto! POR FAVOR.
Pelos vossos filhinhos, mas também para nossa gula, ponham-nos peixe fresquinho na mesa todos os dias.
Que raio! Ainda no outro dia comprei um apara-lápis às onze da noite, num domingo, no chinês da esquina.
Com um sorriso rasgado e muito obligato.
Aprendam. A vida está difícil para todos. Haver clientela é um privilégio que nunca é demais agradecermos.
Olhem que, se calhar, era possível.
Por Pedro Barroso
ESTE CORPINHO não se mantém facilmente. E, apesar de torpes socráticas e maldosas insinuações, eu como, acreditem ou não, noventa por cento de peixe.
Mas, precisamente por isso, tenho um drama. Habituei-me a ser selectivo e a só gostar de peixe muito fresco, bem grelhado, enfim, a coisa como deve ser.
Existem, para isso se conseguir, segredos e tascas que nunca se devem revelar a ninguém, para não passarem a estar cheias e sermos depois prejudicados pela leveza insustentável da nossa bondade.
São locais mágicos de alquimia surpreendente, onde pescadores entram com o balde acabado de chegar do mar e o Gilberto ou o Bolas transformam o conteúdo em maná. Segredos da grelha, do carvão, do lume, dos ventos dominantes, do pingar, do manter o ponto de brasa e circunstância, da simpatia pessoal, da limpeza -nunca demasiada- da grelha, feita com couratos de boas famílias, do momento e a arte da virada, etc.
Mas sobretudo, está bem de ver, o principal segredo está na frescura do animal.
No mar profundo, azul e salgado de que proveio. Na rigidez da carne. No límpido dos olhos. No sangue fresco na guelra. Na escama bem presa ao corpo. No corpo luzidio e teso.
Só de escrever isto já estou a ficar com fome. Um momento…
Voltei.
Acontece que há o drama da poluição no mar. O drama do rodovalho, da dourada e do robalo de cultura. Da sapateira francesa. Enfim. O drama do mercúrio nas águas. O drama das gaitas com que nos andam a enfeitar a vida de morte, todos os dias. O drama dos sítios onde o peixe até será fresco, sim senhor, mas a água é mole, sem vida, lamacenta e quente. E o peixe na conformidade, mole e sem tesura.
Mas há um drama maior da pesca em Portugal.
Eu não me refiro às famosas quotas distribuídas pela CEE. Sim, eu sei. Há as leis que proíbem agora a pesca artesanal ou a forçam a ser feita a mais de duas milhas, a proibição dos alcatruzes do polvo, o rigor das malhas e das multas e outras imbecilidades de armadores e legisladores de gabinete. Gente que, do mar, nem o cheiro!
Ah! E, se me permitem, o preço absurdamente alto do peixe, neste país de litoral e pescadores. Incompreensível.
Mas não é ainda esse o tal problema. Aliás, eu supunha que a grande condicionante ao processo de pesca era a imponderabilidade do mar. Indiscutível. O estado do mar é que determinaria o facto de se poder ou não ir pescar. Mas não. Essa compreende-se. O grande inexplicável enigma é mesmo a folga dos pescadores.
Ao domingo não se pesca, ao que parece, que é pecado. À segunda-feira não se pesca, porque não se pesca à segunda-feira. É a folga, pronto. Acho que deve ser o sindicato do mar, qualquer coisa dessas. Mas se chover e ventar ou puxar mar à terça, pode estar-se dois dias assim, sem se poder sair da barra. Acontece. E quando há clientela sempre pensei eu que tem de se dar um jeito, acelerar um pouco, satisfazer o cliente. Mas não. Na quinta-feira “santa” foi uma espécie de feriado, não foram ao mar. Mas o pessoal afinal é todo religioso?! Estava um dia magnífico! Não sei…
Na sexta-feira… bom… era sexta-feira santa, caramba, está visto que o pessoal não trabalhou. Era feriado.
Por isso mesmo, no sábado de manhã, em plena Páscoa, com a casa a abarrotar de gente para o almoço, o responsável por uma destas tais grelhas de magia que eu não digo, na velha Lagos, estava triste. Não tinha peixe em condições (classificação muito relativa em relação aos carapaus que comi, mas enfim…) pois o pessoal que tinha ido ao mar ainda não tinha voltado. E acrescentava:
- Talvez à noite. Mas como amanhã é domingo… não sei. Eles é que sabem! Eu já nem digo nada…
Por isso,
Senhores pescadores! Imploro-vos! (de joelho no chão):
- Organizem-se! Tenham dó de nós! Furem o esquema! Furem o mar todos os dias!
Os viciados maníaco-compulsivos do peixinho fresco pedem-vos encarecidamente!
Os piscicómanos de todos os quadrantes agradecem-vos o esforço. Vá lá! Corações ao alto! POR FAVOR.
Pelos vossos filhinhos, mas também para nossa gula, ponham-nos peixe fresquinho na mesa todos os dias.
Que raio! Ainda no outro dia comprei um apara-lápis às onze da noite, num domingo, no chinês da esquina.
Com um sorriso rasgado e muito obligato.
Aprendam. A vida está difícil para todos. Haver clientela é um privilégio que nunca é demais agradecermos.
Olhem que, se calhar, era possível.
Etiquetas: PB
5 Comments:
Mas o portugues é assim! pouco dado a trabalhos! Não se trata de serem apenas os pescadores, mas em quase todas as profissões existem alguns ditos profissionais que aproveitam todos os momentos para "descansar".Por muito que se queira, dia santo é dia santo... como diz o outro!
Quem renúncia aos seus direitos, renuncia á sua dignidade
Não sei se o leitor Mike se apercebeu de que, com o seu comentário, ganhou o prémio indicado no penúltimo "post".
Para o receber, só terá de enviar a sua morada para sorumbatico@iol.pt
NOTA: Tenha em conta que o envelope almofadado (onde o livro seguirá) não cabe numa caixa de correio norma, pois é de tamanho "grande".
só depois li as entradas mais antigas e me apercebi do sucedido! envio de seguida!
OK.
O Correio, hoje, já fechou, pelo que segue na 2ª f de manhã.
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