«ACONTECE...»
Abismo
Por Carlos Pinto Coelho
Por Carlos Pinto Coelho
COMO ERA HÁBITO, ela enroscava-se mansamente no sofá enquanto ele dedilhava, absorto, as teclas do computador – ela folheando uma revista, ele compondo infindáveis poemas.
Era o hábito de sempre. O mundo ficava, inteiro, lá fora e a intimidade reinava, em silêncio.
Dessa vez, porém, ela pousou a revista e ficou a olhá-lo. Intensamente. Enternecida. Longo tempo.
Deixa-me saber o que escreveste.
Ele um sobressalto. Pancada de gelo. Náusea. E depois, em voz arrancada, a leitura sussurrada do poema. Grande e ácido, convulsivo, um poema de solidão, feito de muros implacáveis, desencantos e securas. Nele jazia, irremediavelmente excluído, o poeta que o lia. E era autêntico, o poeta, na angústia do seu dolorido fel.
Afundava-se a madrugada, corriam, punhais, os versos pela sala.
Silenciosa, hirta, ela ergueu-se e saiu. Como se nunca ali tivesse entrado.
«Magazine Artes» de Julho de 2007
NOTA: esta fotografia, como todas as outras aqui afixadas em posts com o título genérico «ACONTECE...», é da autoria de CPC.
Etiquetas: CPC
1 Comments:
Muito bonito!
Gostei, venham mais!
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