A Justiça criminosa
Por Clara Ferreira Alves
POR UMA VEZ gostava que em Portugal alguma coisa tivesse um fim, ponto final, assunto arrumado. Não se fala mais nisso.
Vivemos no país mais inconclusivo do mundo, em permanente agitação sobre tudo e sem concluir nada.
Desde os Templários e as obras de Santa Engrácia que se sabe que nada acaba em Portugal, nada é levado às últimas consequências, nada é definitivo e tudo é improvisado, temporário, desenrascado.
Da morte de Francisco Sá Carneiro e do eterno mistério que a rodeia, foi crime, não foi crime, ao desaparecimento de Madeleine McCann ou ao caso Casa Pia, sabemos de antemão que nunca saberemos o fim destas histórias, nem o que verdadeiramente se passou nem quem são os criminosos ou quantos crimes houve.
Tudo a que temos direito são informações caídas a conta-gotas, pedaços do enigma, peças do quebra-cabeças. E habituámo-nos a prescindir de apurar a verdade porque intimamente achamos que não saber o final da história é uma coisa normal em Portugal e que este é um país onde as coisas importantes são "abafadas", como se vivêssemos ainda em ditadura.
E os novos códigos Penal e de Processo Penal em nada vão mudar este estado de coisas. Apesar dos jornais e das televisões, dos blogues, dos computadores e da Internet, apesar de termos acesso em tempo real ao maior número de notícias de sempre, continuamos sem saber nada, e esperando nunca vir a saber com toda a naturalidade.
Do caso Portucale à Operação Furacão, da compra dos submarinos às escutas ao primeiro-ministro, do caso da Universidade Independente ao caso da Universidade Moderna, do Futebol Clube do Porto ao Sport Lisboa Benfica, da corrupção dos árbitros à corrupção dos autarcas, de Fátima Felgueiras a Isaltino Morais, da Braga parques ao grande empresário Bibi, das queixas tardias de Catalina Pestana às de João Cravinho, há por aí alguém que acredite que algum destes secretos arquivos e seus possíveis e alegados, muito alegados crimes, acabem por ser investigados, julgados e devidamente punidos?
Vale e Azevedo pagou por todos.
Portugal tem um défice de responsabilidade civil, criminal e moral muito maior do que o seu défice financeiro, e nenhum português se preocupa com isso apesar de pagar os custos da morosidade, do secretismo, do encobrimento, do compadrio e da corrupção.
Os portugueses, na sua infinita e pacata desordem existencial, acham tudo "normal" e encolhem os ombros.
Quem se lembra dos doentes infectados por acidente e negligência de Leonor Beleza com o vírus da sida?
Quem se lembra do miúdo electrocutado no semáforo e do outro afogado num parque aquático?
Quem se lembra das crianças assassinadas na Madeira e do mistério dos crimes imputados ao padre Frederico?
Quem se lembra que um dos raros condenados em Portugal, o mesmo padre Frederico, acabou a passear no Calçadão de Copacabana?
Quem se lembra do autarca alentejano queimado no seu carro e cuja cabeça foi roubada do Instituto de Medicina Legal?
Em todos estes casos, e muitos outros, menos falados e tão sombrios e enrodilhados como estes, a verdade a que tivemos direito foi nenhuma.
No caso McCann, cujos desenvolvimentos vão do escabroso ao incrível, alguém acredita que se venha a descobrir o corpo da criança ou a condenar alguém? As últimas notícias dizem que Gerry McCann não seria pai biológico da criança, contribuindo para a confusão desta investigação em que a Polícia espalha rumores e indícios que não substancia.
E a miúda desaparecida em Figueira? O que lhe aconteceu?
E todas as crianças desaparecida antes delas, quem as procurou?
E o processo do Parque, onde tantos clientes buscavam prostitutos, alguns menores, onde tanta gente"importante" estava envolvida, o que aconteceu?
Arranjou-se um bode expiatório, foi o que aconteceu.
E as famosas fotografias de Teresa Costa Macedo? Aquelas em que ela reconheceu imensa gente "importante", jogadores de futebol, milionários, políticos, onde estão? Foram destruídas? Quem as destruiu e porquê?
E os crimes de evasão fiscal de Artur Albarran mais os negócios escuros do grupo Carlyle do senhor Carlucci em Portugal, onde é que isso pára?
O mesmo grupo Carlyle onde labora o ex-ministro Martins da Cruz, apeado por causa de um pequeno crime sem importância, o da cunha para a sua filha.
E aquele médico do Hospital de Santa Maria suspeito de ter assassinado doentes por negligência? Exerce medicina?
E os que sobram e todos os dias vão praticando os seus crimes de colarinho branco sabendo que a justiça portuguesa não é apenas cega, é surda, muda, coxa e marreca.
Passado o prazo da intriga e do sensacionalismo, todos estes casos são arquivados nas gavetas das nossas consciências e condenados ao esquecimento. Ninguém quer saber a verdade. Ou, pelo menos, tentar saber a verdade.
Nunca saberemos a verdade sobre o caso Casa Pia, nem saberemos quem eram as redes e os "senhores importantes" que abusaram, abusam e abusarão de crianças em Portugal, sejam rapazes ou raparigas, visto que os abusos sobre meninas ficaram sempre na sombra.
Existe em Portugal uma camada subterrânea de segredos e injustiças, de protecções e lavagens, de corporações e famílias, de eminências e reputações, de dinheiros e negociações que impede a escavação da verdade. Este é o maior fracasso da democracia portuguesa e contra isto o PS e o PSD que fizeram? Assinaram um iníquo pacto de justiça.
«Pluma Caprichosa» - «Expresso» de 20 de Outubro de 2007 - c.a.a.
7 Comments:
Muitas dessas coisas aconteceram no tempo de Mário Soares, esse pai da democracia que desde o início a encaminhou para este estado.
D. Clara tem um programa de TV com o senhor? Isso agora não interessa nada.
O SORUMBÁTICO oferece um exemplar da obra cuja capa se vê no post a seguir a este, ao autor do melhor comentário a esta crónica.
O prazo terminará às 20h da próxima segunda-feira, dia 3 de Dezembro, e cada leitor, devidamente identificado, poderá afixar até 2 comentários.
Pois é, pois é...que desgraça de país este onde vivemos, onde ELES (são sempre Eles)tudo fazem para abalar os pilares da nossa já não tão nova democracia, onde nós como entidades pensantes e esclarecidas duvidamos d`Eles...Eles já mereciam por agora ter um nome, pois até em Tolken ou Mark Twain os maus sempre tiveram um nome. (Sauron e Indio Joe respectivamente)
Apenas no nosso Portugal os nossos tão distintos comentadores preferem mais uma vez definir o abstracto que diga-se, um exercício facílimo na forma e conteúdo, culpando quem nos governa genericamente esqueçendo que o singular não é o todo, e que no fim (ainda e felizmente) são os eleitos que governam.
Curioso é como estes processos criticos normalmente nunca indicam caminhos para uma reflexão mais profunda; apenas o normal enxovelhamento geral e transocial do país...que pena, esperava mais, muito mais, mas provavelmente são ELES que não deixam.
A Clara Ferreira Alves que escreve este texto, aqui no Sorumbático, será a mesma (?) mencionada aqui:
http://movv.org/2007/01/13/clara-
ferreira-alves-e-a-multidao-dos-
barcos/
e aqui:
http://o-espectro.blogspot.com/2006/
03/uma-santanete.html
Permitam-me a manifestação da minha perplexidade.
Não vou, no entanto, deixar passar a oportunidade (da menção no texto do caso Casa Pia) para publicitar a petição que se encontra aqui:
http://www.petitiononline.com/
criancas/petition.html
e, também a campanha para a sua divulgação, que pode ser vista aqui:
http://umjardimnodeserto.nireblog.
com/post/2007/11/29/peticao-online-
para-a-proteccao-das-criancas-em-
portugal
Apelo à participação em ambas.
Obrigado.
Saudações bloguísticas.
An amasing country indeed! A country in a permanent state of suspended reality!
Portugal, “ o país mais inconclusivo do mundo”. Tem cronistas. Tem escárnio e maldizer. Tem poetas. Tem pensadores. Tem formiguinhas incansáveis no seu labor diário. Há por aqui muita criatividade. Somos maleáveis e adaptáveis. Descuramos a ordem o planeamento. Abominamos a rigidez dos procedimentos.
Ontem um teórico, um adepto de conversas intermináveis, dizia-me: “Somos 3 turnos. Temos as mesmas funções , mas cada turno tem os seus métodos. Isto assim não pode continuar... temos que criar procedimentos. Os coordenadores tem que se reunir e assentar definitivamente ... não leves a mal, mas isto precisa de mais normalização.”
“Calma aí! e vamos adoptar os métodos de quem? Os teus? Os de Beltrano ou os de Sicrano? Tu preferes levantar o rabinho da cadeira descer ao andar de baixo e comunicar, falando. Beltrano prefere os emails ou as mensages SITA. Sicrano, o telefone. Queres discutir qual a melhor forma de comunicar? Nunca vão estar de acordo! Vocês são tão diferentes! E todos muito irredutíveis. Não vou forçar a personalidade de cada um. O que me interessa é o resultado final.” Não concordou de início. Mas ele é assim. Discorda sempre, antes de concordar.
Tenho colegas espalhados por esse mundo fora, com culturas algumas ditas superiores, outras, nem tanto. Não somos piores, nem melhores. Somos diferentes uns dos outros, como os outros o são entre si. E CONCLUÍMOS TODOS O NOSSO TRABALHO.
Não sabemos escolher os nossos eleitos. As nossas elites e líders estão aquém. A justiça e a educação ... A Casa Pia, o Carlyle, o Albarran, o Padre Frederico, os McCann, a operação Furacão, o apito Dourado... são casos que provocam desânimo colectivo. Desânimo, que dura o tempo da comunicação e pouco mais. Depois vamos à nossa vida. À família, aos amigos, ao trabalho, às férias. Não temos tempo para mais. Vivemos a correr.
“Vivemos no país mais inconclusivo do mundo, em permanente agitação sobre tudo e sem concluir nada”
A Clara é cronista. Está no centro do furacão. Cumpre a sua função comunicacional, mas não generalize. Olhe à sua volta! Vá lá! …um pouco mais além. Vê alguém agitado e preocupado com esses casos? Viu alguns? Acredito! Deixe passar mais alguns anos. Não verá ninguém. As novas gerações já não leiem Eça. Os “vencidos da vida” e “a choldra” brevemente serão passado.
Há muitas coisas boas por cá, mas quando as pessoas desligam destas comunicações do desânimo colectivo o que acontece é que quem manda pode fazer o que quiser; normalmente na direcção pior para a generalidade das pessoas, essas mesmas que querem pensar na família, nos amigos, no trabalho e nas férias.
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