O discurso da impostura
Baptista-Bastos
NO DISCURSO do poder há uma expressão quase insistente que pretende amparar, como bondosas e altamente patrióticas, as decisões tomadas. "Tomámos em conta os superiores interesses do País." Esta impositiva forma de inevitabilidade política inculca-nos a ideia de que não há nada a fazer senão admitir com consideração e aceitar com respeito as determinações governamentais, quaisquer que elas sejam. Faz lembrar a famosa locução do salazarismo: "Tudo pela nação. Nada contra a nação."
Uma espécie de controlo impeditivo de um pensamento contrário. E, afinal, quais são "os superiores interesses do País"? A experiência no-lo tem revelado que a unilateralidade dos resultados desses "interesses" apenas se destina a favorecer uma minoria, e a abrir-lhe os caminhos de acesso ao poder. Esta impostura, por insistente (tanto Guterres, quanto Durão, Sócrates, Passos Coelho ou Seguro serviram-se da expressão), distingue-se por criar uma espécie de absurda legitimidade. Os tais "interesses" não são os da esmagadora maioria dos portugueses, e a perseverança com que os dirigentes políticos os nomeiam constituem o abastardamento da lógica interna da frase e da pressuposta grandeza do seu significado.
A base constitutiva da nação é a maioria dos portugueses, exactamente aqueles que são mais atingidos pelo infortúnio, e que não estão representados nos "interesses" defendidos pela classe dominante. A expressão, no seu formalismo hiperbólico, é o dispositivo gramatical de um sistema que não deseja ser questionado, por estar ausente de qualquer requisito moral.
No entretanto, Pedro Passos Coelho, grave e denso, avisa-nos de que, para sair da crise, "temos" de empobrecer. Temos, quem? Os mais de nós, atingidos pelas políticas cuja natureza dissimula uma devassidão ética e uma triste barragem ideológica. A vida, para os portugueses, vai ser muito difícil, avisa. Logo, porém, sorridente e feliz, o ministro Álvaro Santos Pereira, sossega a inquietação da pátria: "Certamente, a crise vai deixar de o ser em 2012." Erro grosseiro. Disparate político. Comentaram as boas almas. Menos de quatro horas depois, o ministro desmentiu-se a si próprio, mesmo quando as televisões reproduziram o paradoxo.
Talvez seja um episódio pitoresco. Porém, membros do Executivo, inclusive o primeiro-ministro, são useiros e vezeiros em tornar verdades num funesto derivado. A religião da mentira faz o seu caminho, quase sem contrariedade. E o País, quero dizer: a arraia-meúda do Fernão Lopes, continua a ser um elemento de espoliação, que não tem nada a ver com os apregoados "interesses." Aliás, eles nem ambicionam conhecer a exacta propriedade da frase. Têm sede de justiça e apenas exigem, a quem manda, decência, honra e um pouco de humanidade.
NO DISCURSO do poder há uma expressão quase insistente que pretende amparar, como bondosas e altamente patrióticas, as decisões tomadas. "Tomámos em conta os superiores interesses do País." Esta impositiva forma de inevitabilidade política inculca-nos a ideia de que não há nada a fazer senão admitir com consideração e aceitar com respeito as determinações governamentais, quaisquer que elas sejam. Faz lembrar a famosa locução do salazarismo: "Tudo pela nação. Nada contra a nação."
Uma espécie de controlo impeditivo de um pensamento contrário. E, afinal, quais são "os superiores interesses do País"? A experiência no-lo tem revelado que a unilateralidade dos resultados desses "interesses" apenas se destina a favorecer uma minoria, e a abrir-lhe os caminhos de acesso ao poder. Esta impostura, por insistente (tanto Guterres, quanto Durão, Sócrates, Passos Coelho ou Seguro serviram-se da expressão), distingue-se por criar uma espécie de absurda legitimidade. Os tais "interesses" não são os da esmagadora maioria dos portugueses, e a perseverança com que os dirigentes políticos os nomeiam constituem o abastardamento da lógica interna da frase e da pressuposta grandeza do seu significado.
A base constitutiva da nação é a maioria dos portugueses, exactamente aqueles que são mais atingidos pelo infortúnio, e que não estão representados nos "interesses" defendidos pela classe dominante. A expressão, no seu formalismo hiperbólico, é o dispositivo gramatical de um sistema que não deseja ser questionado, por estar ausente de qualquer requisito moral.
No entretanto, Pedro Passos Coelho, grave e denso, avisa-nos de que, para sair da crise, "temos" de empobrecer. Temos, quem? Os mais de nós, atingidos pelas políticas cuja natureza dissimula uma devassidão ética e uma triste barragem ideológica. A vida, para os portugueses, vai ser muito difícil, avisa. Logo, porém, sorridente e feliz, o ministro Álvaro Santos Pereira, sossega a inquietação da pátria: "Certamente, a crise vai deixar de o ser em 2012." Erro grosseiro. Disparate político. Comentaram as boas almas. Menos de quatro horas depois, o ministro desmentiu-se a si próprio, mesmo quando as televisões reproduziram o paradoxo.
Talvez seja um episódio pitoresco. Porém, membros do Executivo, inclusive o primeiro-ministro, são useiros e vezeiros em tornar verdades num funesto derivado. A religião da mentira faz o seu caminho, quase sem contrariedade. E o País, quero dizer: a arraia-meúda do Fernão Lopes, continua a ser um elemento de espoliação, que não tem nada a ver com os apregoados "interesses." Aliás, eles nem ambicionam conhecer a exacta propriedade da frase. Têm sede de justiça e apenas exigem, a quem manda, decência, honra e um pouco de humanidade.
«DN» de 16 Nov 11
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