Constrói-se um caso
Por Rui Tavares
Desde as crónicas em que primeiro
mencionei a possibilidade de ilegalidade da troika, e depois tentei
demonstrá-la, que o processo às políticas de austeridade se tem vindo a
acumular. Realizaram-se as visitas da delegação da Comissão de Economia
do Parlamento Europeu aos países da crise e os seus co-relatores fizeram
já uma crítica muito sólida dos mecanismos usados pela Comissão
Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional.
Indo mais longe até do que eu pensava que iriam, não foram só os erros
de previsão económica e outras questões técnicas que ocuparam os
relatores. Eles pronunciaram-se também sobre a questão de fundo, a
saber: que a troika não tem cabimento nos tratados europeus, por possuir
poderes de decisão que não lhe foram outorgados, e por albergar uma
instituição extra-União (o FMI) com o qual não há nenhum tipo de acordo,
que necessariamente teria de ser ratificado pelo Parlamento Europeu,
para cooperação entre esta instituição e a zona euro.
Claro que os artífices da troika, tal
como certos estados-membros e o comissário Olli Rehn, tentam tapar o sol
com a proverbial peneira. Alegam que a troika não manda nada, que a
troika não toma decisões, que a troika, no fundo, nunca existiu. Mas os
relatores do Parlamento Europeu estabeleceram bem que a troika toma
decisões e, em muitos casos, impõem essas decisões aos estados que do
seu assédio são vítimas.
Agora há mais:
um novo estudo encomendado pela União Europeia dos Sindicatos a um
professor da Universidade de Bremen, Andreas Fischer-Lescano, defende
que a ação da troika viola a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais. O
professor Fischer-Lescano critica mesmo o inquérito do Parlamento
Europeu por “quase não ter olhado para a dimensão de direitos humanos”
que foi posta em causa pela troika quando, por exemplo, esta forçou
países a baixarem os seus salários. “A estabilidade financeira”, diz
ele, “foi posta acima de todas as outras considerações”, mesmo as que
são essenciais à própria estabilidade financeira (como a estabilidade
social). E, embora os próprios países tenham tomado a decisão soberana
de assinar os memorandos de entendimento, alega o jurista que “há
limites para o que se pode pôr num memorando” sobretudo quando a
alternativa do país é a bancarrota. Como para os indivíduos, para quem a
escravatura por dívidas foi abolida, também para os estados há de se
chegar à conclusão de quem nem tudo é possível fazer com um país
endividado.
A Carta dos Direitos Fundamentais é um
documento admirável, muito mais abrangente do que os poucos artigos dos
tratados sobre os valores e os objetivos da União que eu tenho usado
nestas crónicas, exceto por um defeito: o seu artigo 51 que limita a
aplicação da própria Carta, não a deixando penetrar na ordem interna dos
estados.
É essa a maravilha da análise do
professor de Bremen: a cláusula de limitação da Carta dos Direitos
Fundamentais aplica-se aos estados, mas não às instituições da União. E a
troika tem duas delas — a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu —
que, se justiça fosse feita, deveriam estar agora em apuros.
Claro que entretanto toda a gente já proclama que a troika foi uma
solução ad hoc, e que não deve ser repetida. Mas não podemos ficar por
aqui. Danos injustos e desproporcionados foram causados a milhões de
pessoas. Alguém tem de pagar. Onde houve um dano deve haver uma
compensação.
«Público» de 05 de Fev 14Etiquetas: autor convidado, RT
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