20.1.18

O Carro Azul

Por Alice Vieira
Às vezes penso no meu velho carro azul e sinto assim uma saudade estúpida como se de alguma pessoa amiga se tratasse e não de um simples automóvel, velho de muitos anos, completamente a cair de podre quando, há muito tempo, não tive outro remédio senão largá-lo numa oficina de sucata. O meu carro azul participou activamente nos momentos mais importantes da minha juventude: carregou toneladas de propaganda nas crises académicas, foi cúmplice de paixões proibidas, transportou este mundo e o outro, ouviu discursos de cinema e de literatura, lamentos de jornalistas em começo de carreira, quando a censura cortava o sangue que tentavam fazer escorrer pelas veias dos seus textos — ou muito simplesmente angústias banais do dia a dia lisboeta no princípio dos anos sessenta.
O carro azul, no fundo, pertencia um pouco a todos que lá entravam, uma sala comum onde tudo se discutia.
No entanto, embora pertencendo a todos, o carro azul pertencia sobretudo ao Luís Feist, meu colega de Faculdade.
O Luís era meu amigo.
Muito meu amigo.
Tão amigo que era o único — mas absolutamente o único — a quem eu passava o carro azul para as mãos.
Bastava que, no meio do anfiteatro da faculdade de Letras, ele se sentasse ao meu lado e murmurasse “precisava que tu...” — para logo eu enfiar a mão pela carteira e lhe entregar as chaves. Nunca me disse para onde ia, nunca lho perguntei. À hora marcada o carro azul estava sempre diante da porta da faculdade, com um ar completamente inocente, como se nunca dali tivesse saído.
Por isso o meu carro azul também teve uma outra vida que eu não conheci, e terá sido cúmplice de outros sonhos, ouvido outras conversas, assistido a outros encontros e desencontros.
Durante todos os anos que se seguiram, muito depois de ambos termos largado a faculdade, sempre que eu encontrava o Luís o carro saltava para o meio das nossas conversas, como se falássemos de um parente comum, que agora raramente dava notícias. Acho mesmo que foi o velho carro azul que nos manteve amigos estes anos todos, sem necessidade de nos vermos ou de nos falarmos muitas vezes, separados pelas correrias da vida e do trabalho.
Mas quando nos encontrávamos, era como se ele tivesse acabado de me entregar as chaves do carro, e se preparasse para as pedir de novo na manhã seguinte. Por isso quando li no jornal a notícia da morte do Luís, não acreditei. Deviam ter-se enganado de certeza.
A esta hora deve ele andar no meu velho carro azul por esse mundo a matar saudades.
Se nunca me disse para onde ia, também não ia dizer agora.
Do livro de crónicas Só Duas Coisas Que Entre Tantas Me Afligiram

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3 Comments:

Blogger Ilha da lua said...

É sempre um prazer ler os textos de Alice Vieira! Esperemos que continue a colaborar no Sorumbático

22 de janeiro de 2018 às 21:13  
Blogger SLGS said...

Uma maravilha de texto.
As coisas materiais, de tão pouco valor, às vezes deixam-nos injustiçados, direi melhor, incompreendidos sentimentos que nos seguem pela vida. Também eu vivi semelhantes momentos, desta feita com um velho rádio de válvulas, adquirido numa casa de penhores.
A vida!

24 de janeiro de 2018 às 17:11  
Blogger SLGS said...

Quis dizer "injustificados"

24 de janeiro de 2018 às 17:12  

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