O Carro Azul
Por Alice Vieira
Às vezes penso no meu velho carro azul e sinto assim uma saudade estúpida como se de alguma pessoa amiga se tratasse e não de um simples automóvel, velho de muitos anos, completamente a cair de podre quando, há muito tempo, não tive outro remédio senão largá-lo numa oficina de sucata. O meu carro azul participou activamente nos momentos mais importantes da minha juventude: carregou toneladas de propaganda nas crises académicas, foi cúmplice de paixões proibidas, transportou este mundo e o outro, ouviu discursos de cinema e de literatura, lamentos de jornalistas em começo de carreira, quando a censura cortava o sangue que tentavam fazer escorrer pelas veias dos seus textos — ou muito simplesmente angústias banais do dia a dia lisboeta no princípio dos anos sessenta.
O carro azul, no fundo, pertencia um pouco a todos que lá entravam, uma sala comum onde tudo se discutia.
No entanto, embora pertencendo a todos, o carro azul pertencia sobretudo ao Luís Feist, meu colega de Faculdade.
O Luís era meu amigo.
Muito meu amigo.
Tão amigo que era o único — mas absolutamente o único — a quem eu passava o carro azul para as mãos.
Bastava que, no meio do anfiteatro da faculdade de Letras, ele se sentasse ao meu lado e murmurasse “precisava que tu...” — para logo eu enfiar a mão pela carteira e lhe entregar as chaves. Nunca me disse para onde ia, nunca lho perguntei. À hora marcada o carro azul estava sempre diante da porta da faculdade, com um ar completamente inocente, como se nunca dali tivesse saído.
Por isso o meu carro azul também teve uma outra vida que eu não conheci, e terá sido cúmplice de outros sonhos, ouvido outras conversas, assistido a outros encontros e desencontros.
Durante todos os anos que se seguiram, muito depois de ambos termos largado a faculdade, sempre que eu encontrava o Luís o carro saltava para o meio das nossas conversas, como se falássemos de um parente comum, que agora raramente dava notícias. Acho mesmo que foi o velho carro azul que nos manteve amigos estes anos todos, sem necessidade de nos vermos ou de nos falarmos muitas vezes, separados pelas correrias da vida e do trabalho.
Mas quando nos encontrávamos, era como se ele tivesse acabado de me entregar as chaves do carro, e se preparasse para as pedir de novo na manhã seguinte. Por isso quando li no jornal a notícia da morte do Luís, não acreditei. Deviam ter-se enganado de certeza.
A esta hora deve ele andar no meu velho carro azul por esse mundo a matar saudades.
Se nunca me disse para onde ia, também não ia dizer agora.
Do livro de crónicas Só Duas Coisas Que Entre Tantas Me AfligiramSe nunca me disse para onde ia, também não ia dizer agora.
Etiquetas: AV
3 Comments:
É sempre um prazer ler os textos de Alice Vieira! Esperemos que continue a colaborar no Sorumbático
Uma maravilha de texto.
As coisas materiais, de tão pouco valor, às vezes deixam-nos injustiçados, direi melhor, incompreendidos sentimentos que nos seguem pela vida. Também eu vivi semelhantes momentos, desta feita com um velho rádio de válvulas, adquirido numa casa de penhores.
A vida!
Quis dizer "injustificados"
Enviar um comentário
<< Home