Dívidas, Financeiros e Má Fama
Por Joaquim Letria
Passamos a vida importunados pela dívida e com os nossos bem amados dirigentes a zurrarem-nos que a culpa é nossa porque vivemos acima das nossas possibilidades, por mais precários que sejam os nossos empregos e exíguos os salários vergonhosos que nos pagam e com que nos metem medo. Mas nada disto é novo e eles devem-no saber, a menos que na sua gloriosa incompetência tal ignorem. Mas podemos lembrar-lhes algumas coisas ao mesmo tempo que aliviamos o nosso complexo de culpa.
Olhamos a Idade Média e vemos os empréstimos contraídos pelos monarcas, quase sempre de maneira disfarçada, uma vez que a condenação canónica da usura atingia, também, esta modalidade de crédito. Vemos, ao mesmo tempo, a actividade do financeiro perseguida e tendencionalmente confinada aos judeus, sendo os usurários ameaçados com a excomunhão e as penas do inferno por venderem um bem – o tempo – que só a Deus pertence.
No Deuterónimo estava expresso o mandamento “não exigirás do teu irmão juro nenhum nem por dinheiro nem por víveres, nem por qualquer outra coisa que se preste ao pagamento de juros.” Os pregadores medievais tornaram este tema dominante nos seus sermões, com o usurário inevitavelmente destinado ao Inferno. Alguns, “in extremis”, tentavam a salvação com a entrega a obras pias dos lucros acumulados, sem que tenham chegado até nós notícias do êxito de semelhantes iniciativas.
Alguns historiadores fizeram o delicioso levantamento das peças e das penas do Inferno que, inevitavelmente, aguardavam os usurários no imaginário difundido. Em alguns deles podemos mesmo encontrar as descrições das justificações com que a doutrina católica procurará corresponder às crescentes necessidades de aceitar uma prática que, na realidade, se difundia e seria fundamental para o aparecimento do Estado moderno. Muito mais tarde Benjamin Franklin soltaria a famosa frase “time is money” sintetizando uma nova ética do capitalismo.
Neste lento processo acabou por surgir a figura dos financeiros que normalmente indica uma classe de pessoas ligada ao dinheiro público, quer através de funções políticas ou como prestamistas do Estado. Ao mesmo tempo, os Estados foram aperfeiçoando a disciplina jurídica do endividamento bem como os mecanismos de gestão da dívida pública.
Da má fama não escapam nem uns nem outros, nem a dívida nem os financeiros. Importa que o Estado saiba usar a dívida com virtude e virtuosismo e que os financeiros aceitem regras adequadas que os afastem das penas do Inferno previstas pelos cânones.
E já agora que Deus lhes dê virtude a ponto de serem capazes de nos deixarem em paz sem nos fustigar cada vez mais intensamente, sempre a gritarem na sua imoralidade que a culpa é inteiramente nossa.
Publicado no Minho Digital
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