8.2.19

Mundial 66 — Antes Anestesia do que Coma Induzido

Por Joaquim Letria
Desde criança que tenho uma paixão assolapada pelo futebol. Comecei na rua, joguei na escola, competi no liceu, alinhei numa equipa do “Diário de Lisboa”. Jogava ao sábado numa das equipas da BBC, quando vivia em Londres, ia ver o Chelsea, clube do meu bairro, e jamais falhei uma semana sem ter futebol para praticar, ou simplesmente para ver.
Acompanhei as equipas portuguesas que surgiam em Londres nas competições europeias, ou ia de propósito a França ou aos Países Baixos para as ver e me integrar na paixão dos emigrantes portugueses. Por isso, não é de estranhar que, em Portugal, não tenha perdido um jogo da nossa selecção no Mundial de 1966, colado à televisão que ainda era quase uma novidade no nosso País e de que poucas casas dispunham, indo a casa de amigos, ou correndo para um café apinhado ou metendo-me no extinto Cinema Monumental, com o seu ”écran” gigante, a mostrar-nos em grande as transmissões em directo e a preto e branco da RTP com aquilo que José Augusto, Simões, Eusébio, Coluna, Vicente, Germano & Companhia tinham para oferecer a uma nação extasiada, entusiasmada, que nunca antes vira o nome de Portugal ser tão falado no estrangeiro por uma tão boa razão.
O futebol português, em 1966, já dava muitos sinais positivos. O Benfica passeava a sua classe pelo mundo e fora campeão europeu em 1961 e 1962, derrotando Barcelona e Real Madrid, os seus jogadores e, principalmente, Eusébio eram “craques” indiscutíveis, Germano jogava um futebol tão fino, seguro e em antecipação que deixava os amantes do futebol rendidos à sua discreta, sóbria e elegante presença em campo, contra os mais agressivos e rápidos avançados do mundo, enquanto os dribles de Simões levantavam os estádios, a eficácia de Torres e a pujança de Coluna entusiasmavam quem os visse no seu clube ou, neste caso, na selecção.
FÁTIMA, FUTEBOL E FADO
Em 1966 eu tinha 22 anos, era casado e pai do meu filho mais velho. Trabalhava no Diário de Lisboa, e também no turno da noite dos noticiários do Rádio Clube Português. Seria no ano seguinte que começaria a negociar a minha entrada para The Associated Press (New York) e ficaria ao serviço daquela agência depois duma longa permanência no Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia e Peru. Logo, em 1966, também eu conhecia, principalmente através da minha militância política contra a ditadura, a sina dos três FFs, que os democratas entendiam servir à ditadura para anestesiar o povo português. Este –pensavam eles-só se preocupava com o Fado, a religião de Fátima e a paixão pelo futebol. Mas não era inteiramente verdade. E se o futebol nos distraía e ocupava a nossa agenda, nunca esquecerei que nas zonas libertadas pelo PAIGC, na Guiné (sector de Cajambari), em plena guerra colonial, os combates paravam e os guerrilheiros guineenses ouviam os relatos dos jogos do Benfica e da Selecção Portuguesa com o mesmo fervor que muitos de nós púnhamos nos jogos mais importantes do nosso campeonato ou nas grandes partidas internacionais. Também em Angola e Moçambique vi isso acontecer, durante as minhas viagens de enviado especial à guerra colonial, e não esquecerei nunca uma certa vez em Cabo Verde, já depois da independência, que ao entrar no hotel deparei com o empregado da recepção a ouvir o relato dum jogo de Portugal.
— Quantos há?-perguntei.
— Estamos a ganhar dois a zero,- respondeu ele, detrás dum grande sorriso caboverdiano.

UMA EQUIPA EXEMPLAR
No Mundial de 1966 Portugal foi uma equipa exemplar. Não só na qualidade do seu futebol, mas também no fairplay demonstrado pelos nossos jogadores, regra cuja excepção foi a carga lamentável a Pelé, que inutilizou o jogador brasileiro para o resto daquela edição da Taça Jules Rimet.
Mas depois houve jogos inesquecíveis – todas as vitórias e incluindo a nossa única derrota contra a Inglaterra, que conquistaria o título naquele ano, depois duma final excitante contra a Alemanha.
O jogo mais excitante para os Portugueses foi sem dúvida o Portugal-Coreia do Norte. Face a um adversário extremamente veloz e bem preparado, Portugal encontrava-se a perder por 3-0 ao fim dos primeiros 17 minutos de jogo. O dar a volta ao resultado, e a nossa vitória final por 5-3 foi um verdadeiro hino ao futebol e uma ode ao amor a Portugal.
Mas a vitória sobre a União Soviética que nos deu o terceiro lugar – a melhor classificação de sempre duma selecção portuguesa numa Copa do Mundo- foi um jogo de grande satisfação, que nos consolou da derrota contra a Inglaterra, imerecida e ao mesmo tempo garante do grande prémio de simpatia que ainda hoje desfrutamos em Inglaterra, jogo que ofereceria uma foto inesquecível do meu amigo Eusébio – o melhor marcador deste campeonato - abandonando o campo no final, em choro convulsivo, como antes a foto do “pantera negra” com a bola debaixo do braço a sair da baliza da Coreia do Norte para não perdermos tempo, dera a volta ao mundo.
Impossível esquecer este Mundial de 1966, quer quem o viveu lá – e não tive essa boa fortuna – ou quem o viveu ao longe, pela TV, pelo cinema (os jornais cinematográficos franceses e ingleses mostravam-no-lo à saciedade) ou simplesmente lendo os relatos e comentários dos jornais desportivos ou generalistas.
E se naquele tempo o futebol poderia ser tomado por um anestésico ligeiro que a ditadura utilizava para nos entorpecer, hoje, muitos dos presumíveis democratas que supostamente nos têm governado servem-se do futebol para nos mergulhar num coma induzido.
Publicado no Minho Digital

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3 Comments:

Blogger SLGS said...

TAL & QUAL.

8 de fevereiro de 2019 às 16:32  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Foram feitos documentários de longa-metragem para sala de cinema adaptados a cada selecção.
Foi uma boa ideia, pois permitiu ver em écran grande o que quase todos apenas tinham visto na TV a preto e branco.

8 de fevereiro de 2019 às 16:46  
Blogger José Batista said...

Além do mais, muito belo, caro Joaquim Letria.

9 de fevereiro de 2019 às 00:28  

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