7.4.19

Grande Angular - A imperfeição democrática

Por António Barreto
A ideia da democracia virtuosa é ridícula, infantil e comovedora. E sobretudo errada. Como é ainda uma espécie de perversão totalitária, na medida em que postula modos de ser, virtuosos sejam eles. A democracia é uma forma de escolha dos governos que reside em poucas ideias e princípios. Os cidadãos são iguais em condição e estatuto, o que implica o postulado simples “uma pessoa um voto”. Há eleições regulares e livres, com liberdade de associação e de expressão. Os vencedores governam, os que perdem são oposição e as maiorias respeitam as minorias.
Pouco mais. Honestidade e bondade não fazem parte da democracia. Podem fazer, mas não necessariamente. Eficiência e dedicação ao público também não. Podem, mas não necessariamente. Solidariedade e inteligência também não, tal como respeito pelos outros ou fraternidade. Todos estes atributos de humanidade podem ou não coexistir com a democracia. Ou antes, em todas as democracias existem esses predicados e o seu contrário. Por isso, se queremos uma democracia decente, é necessário lutar, criar instituições, desenvolver direitos e liberdades e estimular a decência.
Vem isto a propósito deste difícil período que é o dos anos eleitorais. Vive-se em campanha durante meses atrás de meses. A demagogia surge por vários lados. Mentira e propaganda sucedem-se. Oportunismo e infâmia não conhecem limites. Feliz ou infelizmente, tudo isso convive com a democracia. Pode assim criar-se um regime ou um sistema político de inferior qualidade, vulgar e desigual. Mas não é a democracia que está em causa, são os partidos, os dirigentes, os sindicatos, os empresários e os intelectuais.
Um ano eleitoral é cruel. É mesmo o mais cruel de todos os anos. Mal para nós todos, mal para a inteligência, mal para a sensibilidade e mal para a humanidade. Ainda bem para a democracia! É cruel porque concentra quase tudo o que não presta na política democrática: populismo, propaganda, insulto, denúncia, delação, caça ao voto, oportunismo e demagogia. É bom para a democracia porque torna visíveis os defeitos que, com jeito e sorte, podem ser corrigidos.
É cruel porque revela os oportunistas e os aldrabões, assim como os que os denunciam, no que tantas vezes revelam também maus fígados. Mas é bem para a democracia porque exibe maleitas e permite correcções. Permite, não as faz necessariamente. Este ano eleitoral já nos trouxe várias coisas boas. O governo ofereceu benefícios para ajudar quem precisa, designadamente com os passes sociais para os transportes, assim como o descongelamento de alguns vencimentos. Foi também uma excelente oportunidade para a oposição denunciar a demagogia eleitoral. E foi um estímulo eficaz para desvendar as histórias do nepotismo e das famílias nos cargos políticos. São histórias frequentes entre nós, desde há trinta ou quarenta anos, mas presentes sobretudo no actual governo socialista.
De tudo isto, não é a democracia a culpada. É o sistema político, a cultura, os partidos e os dirigentes. Democracia, como tal, não implica seriedade, honestidade e isenção. Se estas existirem, a democracia revela. Se não existirem, a democracia também pode revelar.
A democracia não evita nem proíbe eleitoralismo ou propaganda demagógica. Mas permite que os queiram combater. A democracia não implica privilégios aos advogados, nem recompensas para quem faz tráfico de influências. Mas permite que vivam e trabalhem os que querem contrariar estas pragas.
A democracia não é um regime de beatos, virtuosos e honestos. A democracia não impede que se designem primos e maridos, nem que se faça demagogia eleitoral. Nem evita que brigadas de contrabandistas de regras jurídicas venham, pela calada da madrugada, rever leis e favorecer os tratantes. Mas permite que quem defende regras de decência e honestidade possa lutar com eficácia e possa construir instituições livres e isentas.
Prometer mundos e fundos, assim como distribuir “cabrito com batatas” e “bacalhau a pataco”, são inerentes à democracia portuguesa, são atributos folclóricos da política nacional há muito tempo. Não fazem parte necessariamente, mas acompanham-na há décadas e tem sido difícil reduzir os seus efeitos. Pelo contrário, parecem em progressão. Os passes sociais de transportes são um belo exemplo. São evidentemente cabrito e bacalhau. Acontece que são socialmente úteis e os beneficiários agradecem. Por isso, são criticados pelas oposições. Com ciúmes, pois claro. Que queriam ser elas a fazer exactamente o mesmo.
Acusar os governos de eleitoralismo é vício de invejosos. Tal como praticar o eleitoralismo é hábito de oportunistas. Fazer propaganda da obra feita, gastar recursos com excursões e inaugurações, cortejos e beija-mãos faz parte da democracia. Denunciar isso tudo também.
Nomear amigos, designar familiares directos ou indirectos, recrutar para os seus serviços ou para os do amigo e colega, favorecer membros do partido e do clube, ajudar a maçonaria ou a igreja, proteger a região ou a profissão, fazem infelizmente parte da democracia mal servida de instituições, de hábitos de cidadãos livres e de informação livre.
Melhor do que qualquer outro regime, a democracia dá ou permite mais liberdade a toda a gente. Incluindo bandidos, ladrões e corruptos. Déspotas e mentirosos. Eis por que, em democracia, tem de se tomar medidas especiais para que isso não aconteça e para evitar que uns destruam a democracia. Os hábitos e a cultura servem. Mais ainda, as instituições e a justiça.
São muitas as perversões democráticas. Submeter as instituições “porque não são eleitas”. Designar camaradas, colegas, correligionários e companheiros para cargos e funções. Nomear familiares e parentes, ocupar instituições e empresas, na crença de que a “legitimidade democrática” serve para tudo, incluindo a corrupção e o nepotismo. Fazer o capitalismo “à mão”, com nome de destinatário. Nomear e designar capitalistas, com cartas de conforto e favores de créditos. Fabricar gestores públicos. Fazer e tratar da economia “caso a caso”. Subsidiar com retrato e fotografia. Nomear por fidelidade e amizade. Entender que a democracia eleitoral e partidária preenche a vida e que concede autoridade para que os vencedores possam dispor das instituições, das organizações, das leis e das regras de vida em comum.
A democracia é um regime político de pessoas imperfeitas, de cidadãos com tentações e de gente humanamente vulnerável. Mas isso não é desculpa. Os governantes de hoje, que se portaram mal com as nomeações familiares, não podem ser ilibados porque os “outros fizeram o mesmo”. A maior virtude da democracia, além da igualdade de condição, consiste na possibilidade de corrigir e melhorar. De lutar contra a imperfeição. E de castigar quem se aproveita ou destrói a democracia. 

Público, 7.4.2019

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2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Se fosse possível castigar todos aqueles que se aproveitam da democracia, deixaríamos de ter monopólios, políticos e intelectuais.
Ribas.

8 de abril de 2019 às 01:33  
Blogger Ilha da lua said...

Depois de ler esta crónica,continuo a acreditar, que a imperfeição democrática é a imperfeição mais perfeita de todos os regimes políticos

11 de abril de 2019 às 22:41  

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