Grande Angular - Justiça e democracia
Por António Barreto
A ninguém passa despercebida a aparente ou real luta entre magistrados. Sindicalizados ou não afrontam-se relativamente aos temas e ao exercício dos direitos à greve. Magistrados judiciais e magistrados do ministério público ignoram-se ou detestam-se, nem sempre cordialmente, e rivalizam em poderes, autonomia e estatuto. Juízes e procuradores tentam mesmo, não poucas vezes, atropelar-se. Magistrados das diversas instâncias revelam divergências que ultrapassam o que poderia ser compreensível, isto é, a geração, para atingir graus de perseguição institucional. Magistrados de esquerda e de direita não escondem, em função ou na praça pública, as suas divergências. Magistrados com e sem ligações pessoais ou políticas a titulares de poder exibem também, conforme as circunstâncias, divergências sérias que nem sempre resultam de uma diferente interpretação da lei.
As diferenças de opinião, entre magistrados, seriam absolutamente normais, como se verifica em todas as profissões, se resultassem apenas de diferenças de interpretação. Seriam aceitáveis, se não tivessem outros fundamentos, nomeadamente políticos. Seriam admissíveis se não tivessem o condão de suscitar dúvidas. O problema é que, entre nós, nos últimos anos, os motivos dessas divergências parecem ter cada vez mais razões ocultas. O que é muito negativo para o Estado de direito. Ao resultarem de motivos políticos e outros, são sinal de rivalidades menores e de ferida aberta na isenção. Por isso mesmo, são motivo de inquietação pública. É verdade que também há juízes bons, também há magistrados muito bons e isentos e também há procuradores com grande sentido de justiça e de independência pessoal. No entanto, por mais que sejam, não são suficientes para acalmar um pouco as vagas de estranhas sensações que percorrem a comunicação todos os dias. Quando persistente, a suspeição é o pior inimigo da justiça, o pior veneno para a sua maior virtude, a confiança.
Muito em especial, os grandes processos políticos e económicos, que envolvem ministros, deputados, directores gerais, gestores e banqueiros, têm sido férteis em divergências entre magistrados de tal modo graves que nos criam as maiores dúvidas sobre a isenção da justiça. Temos cada vez menos a certeza de que, nestes processos e nestes casos, todos com conotações aos poderes políticos e económicos, a justiça esteja entregue em boas mãos. É verdade que casos como os de José Sócrates, Ricardo Salgado, Manuel Pinho, Armando Vara, António Mexia, Duarte Lima, Vale e Azevedo, Zeinal Bava, José Berardo e Jardim Gonçalves, para já não falar de instituições e empresas, como o BES, a CGD, o Montepio, o Banif, a EDP, a PT, o BCP e outros, são tão graves e tão vistosos que explicam tanta divergência. Explicam, mas não desculpam. Por isso mesmo e porque a opinião está a ser massacrada por sucessivas notícias, sem falar de boatos, é conveniente pensar em mecanismos capazes de reforçar o escrutínio da justiça sem beliscar a sua independência. Na França, nos Estados Unidos, na Suíça, na Grã-bretanha e tantos outros há respostas para essa necessidade. Como todos os casos acima referidos estão já feridos de modo talvez irreparável e não se pode, nem deve, mexer na justiça de modo leviano, o que quer que se faça já só tem efeitos no futuro. Paciência.
Há maneiras legais de destruir a justiça. Há processos legais de salvar cúmplices e favorecer criminosos. Há garantias suficientes para adiar indefinidamente processos. A justiça, em todas as suas fases, necessita de mais escrutínio, menos garantias, menos burocracia, menos chicanas processuais, menos favores prestados aos poderosos e aos advogados potentes e menos facilidades oferecidas aos profissionais da política e do tráfico de influências. Em Portugal, como talvez em raros países do mundo, a independência da justiça é muito mais do que isso, é auto-gestão e auto-governo.
Os Conselhos Superiores têm um enorme poder. Uma maioria de membros não magistrados seria um factor adicional de isenção e escrutínio. Não é suficiente, mas ajuda. Isso já pode ser verdade no caso dos Magistrados, em cujo conselho, se nenhum membro designado for do ofício, se pode verificar uma maioria “civil”. Mas tal não é possível no caso do Ministério Público, onde a maioria é de procuradores. A tentativa de alterar esse estado de coisas foi frustrada este ano. Em certo sentido, ainda bem, pois seria feita no fim da legislatura, em correria, em ligação quase imediata com as dificuldades crescentes dos processos Sócrates e Salgado. O Gato era enorme, mas o Rabo ainda maior! Espera-se que, em legislatura ulterior, com serenidade, se encare de novo o tema. A situação foi parecida com a substituição da Procuradora-Geral. É claro que um mandato mais longo, mas único, é uma solução preferível. Mas fazê-lo, como foi feito, para forçar uma substituição e em vésperas de eleições, sem prestar atenção ao que se tinha passado e passa com as recentes crises da justiça, era evidentemente uma solução que levantou, justamente, todas as suspeitas.
Será que, nos meios políticos e nas grandes instituições, não se vê o dano que os acontecimentos estão a causar à democracia e à justiça? As notícias e as peripécias relativas aos juízes e procuradores, designadamente Ivo Rosa, Carlos Alexandre e Rosário Teixeira, não serão suficientes para se perceber que as brechas e as feridas podem ser, por muitos anos, irreparáveis? Não haverá quem veja que já não basta gemer de inquietação?
É talvez a mais pesada e grave responsabilidade do poder político democrático, o que inclui Presidente da República, Assembleia da República e Governo: começar a preparar, para daqui a muitos meses ou uns anos, uma pequena reforma das estruturas de poder na Justiça e nos modos de ligação à democracia, o que exige seriedade, preparação e debate. Entre todas as instituições, entre todos os titulares da soberania, só a justiça e os tribunais estão absolutamente livres de qualquer mecanismo de escrutínio, contrapeso e reequilíbrio. Todos, menos aqueles, estão sujeitos a avaliação, a contrapoder e, quanto mais não seja, a eleição. Justiça e tribunais não estão submetidos a qualquer avaliação ou acompanhamento. A não ser pelos próprios.
É uma pequena reforma, pela dimensão, enorme pela importância. Será um bom começo do longo trabalho de libertação da justiça dos processos e das garantias que a destroem. Talvez seja essa a melhor maneira de respeitar um dos mais importantes preceitos da nossa Constituição: “… administrar a justiça em nome do Povo”. Em nome de… Não em vez de…
Público, 14.7.2019
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