24.7.19

O INCÊNDIO DE MOSCOVO... e os nossos


QUANDO chega a “época dos fogos”, a conversa é sempre a mesma e inclui, invariavelmente: as alterações climáticas, o desordenamento florestal, os pirómanos, os “negócios do fogo”, a Protecção Civil, o SIRESP, os concursos para os meios aéreos, a actuação dos bombeiros, as mais diversas descoordenações e incompetências, os eucaliptos... — e tudo o mais que nós sabemos, incluindo as intermináveis reportagens das TV, pontuadas por intervenções de políticos que, entre uma e outra lágrima de crocodilo, nos garantem que “a culpa é do governo anterior”. Mas só raramente se diz o óbvio: tudo aquilo arde, porque não pode deixar de arder: as árvores estão lá, mas não os seus donos; o mato está lá, mas não quem o roce; já não há cabras, essas eficazes sapadoras; o alarme, quando é dado, é tardio, porque já não há quem o dê a tempo; os que acorrem em pessoa já são poucos e idosos — e por aí fora, porque o país, como sucede no mundo todo, deixou de ser “rural”: os poucos que ainda não morreram estão sem forças, e os outros há muito que debandaram dessas paragens. 
Trata-se de uma realidade que conheço bem — não como turista, mas como pessoa que, por motivos familiares e profissionais, passou décadas a percorrer o país de-lés-a-lés, residindo meses (e, por vezes, anos!) nos mais variados e remotos lugares do chamado “Portugal profundo” — e, infelizmente, parece-me óbvio que nada do que atrás referi vai ser revertido.

Vale a pena, por sinal, ver as semelhanças com o que Leon Tolstoi escreveu em “Guerra e Paz”, faz agora 150 anos, acerca do famoso incêndio de Moscovo, quando, em finais de 1812, Napoleão ocupou a cidade:

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OS FRANCESES atribuem o incêndio de Moscovo ao patriotismo feroz de Rostoptchine, os russos à selvajaria dos franceses. Na realidade, as causas do incêndio de Moscovo não podem imputar-se concretamente a ninguém. Moscovo ardeu porque se encontrava colocada em tais condições que qualquer outra cidade construída em madeira devia arder de forma análoga, independentemente de poder ou não recorrer às suas cento e trinta bombas. Moscovo devia arder porque os habitantes partiam. Era tão inevitável como a inflamação dum monte de aparas sobre o qual, durante vários dias, caíam faúlhas. Uma cidade construída de madeira, na qual, mesmo quando ali se encontravam os proprietários e a polícia, se produziam todos os dias incêndios, não podia de maneira alguma deixar de arder quando já não havia habitantes e nela se alojavam os soldados, fumando cachimbo e fazendo fogueiras na praça do Senado com as cadeiras do palácio, para prepararem as suas refeições diárias

Em tempo ordinário basta que as tropas se alojem nas aldeias para que o número de incêndios aumente logo. Em que grau deviam, pois, aumentar as oportunidades de incêndio numa cidade construída de madeira, vazia, ocupada por um exército estrangeiro? O patriotismo feroz de Rostoptchine e a selvajaria dos franceses não entram aqui para nada. Moscovo ardeu por causa dos cachimbos, das cozinhas, das fogueiras, da falta de cuidado dos soldados habitantes mas não proprietários das casas. Mesmo se houve incendiários - o que é muito duvidoso, porque ninguém tinha motivo para incendiar, sempre era muito perigoso - não é possível pô-los em causa, porque, sem eles, teria sido a mesma coisa. Por lisonjeiro que seja para os franceses acusar a ferocidade de Rostoptchine e para os russos a barbaridade de Bonaparte, ou, mais tarde, pondo um facho heróico nas mãos do seu povo, não se pode deixar de ver que tal causa imediata de incêndio não podia existir, porque Moscovo devia arder, como deve arder toda a cidade, fábrica ou casa cujos amos partiram, e onde se introduzem, para lá viver, pessoas estrangeiras. Moscovo foi queimada pelos habitantes, é certo, mas por aqueles que partiram e não por aqueles que ali ficaram. Ocupada pelo inimigo, não permaneceu intacta como Berlim, Viena, etc., por isso que os seus habitantes não deram o pão, o sal e as chaves aos franceses, mas preferiram abandoná-la».
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«Guerra e Paz» - Livro Terceiro, Cap. XXVI
Ed. Editorial Inquérito

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7 Comments:

Blogger 500 said...

E isso. Tolstoi tinha razão, tal como o CMR. E não vejo volta a dar.

24 de julho de 2019 às 19:09  
Blogger Ilha da lua said...

Uma comparação perfeita...e,uma enorme falta de esperança

25 de julho de 2019 às 00:26  
Blogger Dulce Oliveira said...

Peço desculpa, mas no caso de cá, continuo a achar que os fogos são na sua maioria de origem criminosa pois que os meios de comunicação sobretudo as TVs são os primeiros a avisar das condições ideais para tal

25 de julho de 2019 às 09:11  
Blogger José Batista said...

Parabéns, CMR.
Certíssimo e eloquentíssimo.
Contudo, e porque conheço bem a zona interior do pinhal (que agora já não é pinhal...), executar faixas de contenção junto das habitações e no perímetro das povoações não era nada do outro mundo, e ficaria barato por comparação com o que se tem gasto em aviões e combustível e horas de vôo e aquisição e manutenção de carros de bombeiros, etc. Nem falo das vidas perdidas... No tipo de florestação também se devia intervir. No resto teríamos que conviver com o fogo. Mas, aí, teríamos que recorrer ao fogo preventivo, a usar nos meses de Inverno e Primavera. Que onde ardeu recentemente não volta a arder. Ora, em todas essas vertentes sobra a negligência, a incapacidade de organização e... negócios, sim. Porquê? Porque somos uma desgraça. Não sei se é isso que nos dá «cimento» enquanto país, ao longo da História...

25 de julho de 2019 às 09:33  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

A família da minha mulher é de uma aldeia da Beira Baixa (V. V. Ródão), rodeada de pinheiros.
Com 2 ou 3 anos de intervalo, ardeu a serra toda e o mato chegou aos palheiros e até às casas.
Um dos incêndios foi provocado por um pastor (talvez a cozinhar). Os outros não sei.
Há 50 anos, quando conheci aquilo pela primeira vez, a terra tinha umas 100-150 pessoas. Agora tem umas 20, só velhos.
Mesmo que os incêndios fossem de origem criminosa, as pessoas viam, acudiam em pessoa e chamavam os bombeiros.
Toda a gente ia à serra apanhar lenha, pinhas e mato.
E se houvesse incendiários, estes arriscavam-se a ser conhecidos... e a acabar mal.
Neste momento, a minha sogra tem 95 anos e vive connosco.
Já quisemos DAR OS TERRENOS mas ninguém os quer.

25 de julho de 2019 às 19:13  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

E não referi as cabras, que toda a gente tinha (e às dezenas!), e que limpavam tudo, nomeadamente à volta das casas.

26 de julho de 2019 às 08:54  
Blogger Ilha da lua said...

Tudo se modificou...e, não estivemos atentos aos problemas que daí poderiam resultar Com tanta área ardida, qualquer dia, nem a beleza natural nos resta

26 de julho de 2019 às 13:40  

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