19.2.21

LIMPAR A CABEÇA E FAZER O CORPO PAGAR

Por Joaquim Letria

Parece que foi ontem que eu saía às duas da manhã duma segunda sessão duma Revista do Parque Mayer, perfeitamente a tempo de encontrar cafés abertos com gente a conversar e a máquina dos expressos ainda ligada.

Depois dum café e de dois dedos de conversa, saltava-se gostosamente de cabaret em cabaret. Encontrávamos aí as habituais e os habituais, é verdade que se bebia bem mas ninguém picava os braços e os afectos, por um lado, e a luxúria por outro, entretinham-nos até bem dentro da madrugada, muitas vezes até de manhã.

Eu não era um desses fregueses de mercearia de bairro que, uma vez por semana, vive a aventura das grandes superfícies. Compartia com naturalidade essa promiscuidade das pequenas multidões com o gosto de desfrutar o prazer mais íntimo das pequenas lojas.

Nunca fui um incapacitado face à mais complicada adaptação de limpar a cabeça e fazer o corpo pagar o ócio, a aventura, o prazer, a dúvida e viver a vida. Era a nossa vingança da infelicidade da vida do pára-arranca, da tristeza, do abandono, das incertezas. E vai ser essa a nossa vingança daquilo que a vida nos inflige hoje, logo que a maioria de nós conserte a sua vida.

Já devem ter reparado que só muito raramente escrevo algo relacionado com a pandemia que tanto nos faz sofrer, mas recuso-me a cantar no coro de todos os que se substituem aos médicos, aos economistas, aos sociólogos, aos políticos, criando um ambiente que tanto faz sofrer, muitas vezes dizendo coisas sem fundamento mas que contribuem para a neurose e o sofrimento mental que tanta gente afecta.

Deixem os médicos e enfermeiros derrotarem a doença, os políticos fazerem o seu trabalho mesmo com algumas asneiras difíceis de aceitar que, essas sim, devem ser denunciadas, mas permitam que se pense noutras coisas, não nos imponham o lado mau de tudo o que temos de resolver no dia-a-dia das nossas vidas. E o pesadelo do futuro logo se verá.  Mais vale pensarmos assim do que submetermo-nos á monstruosa crueldade a que nos sujeitam sem nos deixarem outra saída que não seja não pensar em mais nada que não seja a desgraça desta situação.   

Transportar todo o passado livre e feliz para a nossa vida de hoje deixa-nos um mau gosto na boca e desenha-nos um sorriso triste na cara. Mas há que acreditar que tudo aquilo de que nos lembramos e os pequenos prazeres que ainda não se apagaram voltarão a ser possíveis e que ganharemos força e vontade para ajudar, estimular e conseguir levar até á vitória aqueles outros de todos nós que vão vencer este maldito tempo e que ultrapassarão as marcas mais graves que a doença nos vai deixar.

Publicado no Minho Digital

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