28.1.22

VÃO DAR SANGUE

Por Joaquim Letria

Recordo-me dum tempo em que não havia ONGS (Organizações Não Governamentais) subsidiadas por discretas secretarias de Estado nem por Altos Comissariados.

Mas havia muita generosidade. Mandava-se tabaco e ambulâncias para os militares em Angola, Guiné e Moçambique e não se dizia que o tabaco mata porque dizer isso a quem andava aos tiros parecia, com certeza, muito mal.

As coisas chegavam ao destino a tempo e horas, como eu próprio me lembro de comprovar e as senhoras da Ditadura andavam entretidas com a caridade. Hoje não há caridade. Há solidariedade que parece ser mais uma conquista de Abril.

Dantes, a solidariedade era outra coisa – era clandestina e feita a favor das famílias dos presos políticos ou dos mortos pela PIDE.  A caridade também só rendia aos pobrezinhos. Hoje, a solidariedade parece ser uma actividade bem lucrativa.

Lembro-me dum incêndio que destruiu toneladas de bens alimentares destinados a minorar a fominha da miséria envergonhada que anda por aí. O fogo ocorreu em circunstâncias estranhas e muitos ficaram a pensar como é que com tanta gente a fingir que almoça um “croissant” e um copo de leite e janta uma tigela de sopa. Não se tinha distribuído tanta proteína, hidratos, ferro e vitaminas armazenados em condições perecíveis e deploráveis.

Actualmente, milhões de euros angariados por comovente generosidade não chegam ao destino ao cabo de anos passados sobre impiedosa destruição de vidas e bens por incêndios provocados pela ganância daqueles que dizem combatê-los, no continente e na Madeira.

Meninas desta situação e meninos “prafrentex” assalariados por comissariados e ongs aparecem regularmente muito empreendedores a pedir ajudas através de números de telefone de valor acrescentado e depósitos em contas à ordem. O Estado não se fica atrás: cobra IVA e outros impostos sobre donativos e obras de reconstrução daquilo que não protegeu ou até ajudou a destruir e engorda ainda mais à custa da desgraça. 

Há décadas que contribuo para uma organização com sede no Reino Unido que ajuda populações carenciadas no Terceiro Mundo. Todos os anos recebo um relatório e contas para que eu fique a saber como foi bem empregue cada tostão e quem beneficiou com a minha ajuda e a generosidade de milhares de outras pessoas que anonimamente também querem ajudar o próximo.

Por cá, o regabofe atingiu um ponto que não se pode criticar aqueles que dizem que só pagam o almoço a quem tem fome e ajudam directamente quem vive com pensões miseráveis, dando dinheiro em numerário só a desgraçados que precisem dum “xuto”, antes que estes vão roubar alguém.

As meninas e meninos desta situação podiam ser mais úteis a … dar sangue. Dói um bocadinho, mas também está em falta. E com o “empreendedorismo sustentável” que os anima ainda descobrem que o sangue pode ser  um rentável  nicho de mercado.

Publicado no Minho Digital

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1 Comments:

Blogger Fernando Ribeiro said...

Não sei porquê, parece haver neste artigo uma certa nostalgia pela ditadura, que é coisa pela qual Joaquim Letria não simpatiza com toda a certeza.

Joaquim Letria começa por nos dizer que se recorda de um tempo em que não havia ONG subsidiadas por secretarias de Estado ou Altos Comissariados, e logo de imediato passa a referir uma ONG fortemente subsidiada que havia nesse tempo, o Movimento Nacional Feminino (sem o nomear). Chama-lhe «muita generosidade».

Eu não sei onde Joaquim Letria fez a tropa, para dizer que se mandava tabaco e até ambulâncias (!) para os militares que estavam em Angola, Moçambique e Guiné. Pois eu fiz a minha tropa no norte de Angola, onde andei «aos tiros», e ainda estou à espera de receber (já não digo a minha ambulância) o meu tabaco. Até este preciso momento nunca o MNF me mandou um maço de tabaco, um cigarro ou mesmo um pau de fósforo queimado que fosse! E eu era (já não sou) fumador. Diz Joaquim Letria que «as coisas chegavam ao destino a tempo e horas». Nunca chegar é chegar «a tempo e horas»?!

Na verdade, era bom que as senhoras da Ditadura não mandassem ambulâncias para quem andasse «aos tiros», porque as ambulâncias são por norma fechadas e numa picada semeada de minas anti-carro elas matariam mais do que salvariam quem fosse lá dentro. As evacuações dos feridos, de resto, faziam-se de helicóptero e não de ambulância, e não era por acaso.

Já agora, posso acrescentar que fui dador de sangue durante muitos anos e posso afirmar que dar sangue não dói, nem «um bocadinho». Não dói. Ponto.

Fernando Ribeiro

29 de janeiro de 2022 às 03:03  

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