Grande Angular - Se…
Por António Barreto
Há males que vêm por bem… Há quem diga. Mas não é verdade. Ou quase nunca é verdade. Os males vêm por mal. E mesmo que haja remédios ulteriores, mesmo que possa haver reparação e recuperações, os males feitos são males feitos. Os mortos e a destruição continuam a ser mortos e destruição. Os medos e a insegurança persistem. A dor e o sofrimento são irreversíveis. O ódio e a desconfiança dificilmente desaparecem. Das guerras de agressão e das guerras civis, para só falar das mais recentes, em Angola, Jugoslávia, Síria, Afeganistão, Chechénia, Ruanda e Serra Leoa nada veio de bom. Desta guerra na Ucrânia, deste ataque premeditado e intencional, nada virá de bom para a Europa. Mesmo se deste autêntico assalto resultaram uma impressionante manifestação de solidariedade e um sentido acrescido da necessidade de um esforço colectivo, mesmo assim, as consequências imediatas são nefastas e trágicas.
Ainda só lá vai pouco mais de uma semana, mas o inventário já é aterrador. Uma agressão não provocada e um massacre indiscriminado. Uma catástrofe económica com terríveis efeitos imediatos nos preços, no abastecimento, no emprego, na despesa social e na quebra de produção. Um pesadelo humano e social, num continente que ainda não tinha conseguido superar as consequências sociais da pandemia e que se depara agora com a mais aterradora crise económica. A destruição de um possível clima de segurança construído pacientemente, há décadas, depois dos efeitos devastadores dos fascismos, da segunda guerra e do comunismo, assim como depois de enormes e perigosos esforços de reconstrução de um mapa europeu herdeiro do fim da “cortina de ferro”, da “guerra fria” e do “muro de Berlim”. A aniquilação, por muitos anos, da esperança de paz arduamente alimentada durante décadas. Qualquer que seja a evolução próxima, uma coisa é já certa: está marcada a próxima geração de Europeus.
O pessimismo ou o cepticismo impõem-se como as atitudes mais razoáveis e mais racionais. Mas é também lícito ter alguma esperança. Ou fazer votos para que seja possível superar os efeitos desta maldita guerra. É possível sonhar com uma nova Europa. Mas só em condições de um esforço sobre-humano, de uma formidável e constante determinação.
São muitas as condições que permitirão, talvez, salvar os Europeus. Se a Europa souber tratar da sua autonomia e dos preços que há a pagar por tal, sem a crença ilusória de que, confiando noutros que cuidam de nós, nos mantemos independentes e livres.
Se a Europa e os Europeus souberem defender-se com eficácia e tratar finalmente, como raramente fizeram no passado, da sua defesa militar.
Se a Europa souber recuperar um dos seus mais valiosos trunfos, a Grã-Bretanha e se esta souber retomar o lugar que é seu, na Europa.
Se os Europeus souberem repensar as suas instituições e as suas políticas federais, combinando-as com as suas tradições nacionais, poderão talvez contrariar grande parte dos impulsos e das erupções nacionalistas que cada vez mais ameaçam uma Europa descarnada, burocrática, uniformizada e centralizada, sem valor humano e de reduzida cultura.
Se a Europa souber repensar e refazer as suas estruturas produtivas, nomeadamente industriais, investindo na ciência, na tecnologia e na produtividade e libertando-se da miragem da deslocalização do trabalho e da utilização intensiva da “fábrica China”.
Se os Europeus souberem libertar-se, embora respeitando plenamente os seus direitos à existência e à expressão, dos complexos de culpa e dos remorsos perante os comunistas de Gulag e os marxistas de boulevard.
Se a Europa e os Europeus souberem e conseguirem forjar novas politicas de imigração e demografia e novas atitudes perante os fluxos populacionais incontrolados, designadamente através do controlo dos movimentos, deslocações e de estabelecimento.
Se a Europa souber lutar eficazmente contra a corrupção, contra os políticos predadores e contra os bandidos bilionários, indígenas ou estrangeiros, que têm estado na vanguarda da pior Europa que se imagina, a que facilmente troca a moral e a lei pelo ouro.
Se a Europa e os Europeus conseguirem por uma vez libertar-se dos seus sentimentos de culpa, submissão, tentação e sedução perante o dinheiro e os poderosos.
Se a Europa e os Europeus souberem organizar-se mental e politicamente para se defender dos grandes poderes que os cercam e se podem transformar em ameaças, o poder americano, os exércitos russos, o terrorismo islâmico, a indústria chinesa e a imigração africana.
Se a Europa e os Europeus conseguirem, mau grado a renovação e a fundação da sua nova autonomia, conjugar e articular o futuro com o seu mais conhecido, mais cioso de liberdade e melhor aliado, os Estados Unidos da América.
Se os Europeus conseguirem dar corpo e solidez, realidade e instituições, às suas tradições de liberdade e de cultura assim contrariando os populismos nacionalistas de pacotilha que vivem, com oportunismo, a parasitar as debilidades da democracia.
Se os Europeus conseguirem dar novo sentido às suas tradições de cosmopolitismo, mas que não dispensa o orgulho da afirmação da sua cultura própria.
Se a Europa souber tratar de uma sua chaga indelével e crescente, a desigualdade social, que impede e enfraquece a coesão social.
Se a Europa souber respeitar o melhor da sua história, a sua cultura, e a sua melhor história, a da liberdade.
Se os Europeus souberem e quiserem, farão uma Europa. Livre e em paz.
Público, 5.3.2022
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