Grande Angular E a Justiça, Senhores?
Por António Barreto
Novo programa de governo. A pandemia e a guerra são urgências indiscutíveis. Mas também há política e sociedade, economia e cultura. Um programa serve para isso mesmo, para o que se deve fazer para além das emergências. A começar pela definição de prioridades, o que ainda não está feito. A coreografia habitual (o verdadeiro desejo dos políticos, as traições previsíveis, a fantasia das sucessões…) tem ocupado o proscénio.
Novo Parlamento. Novo Governo. Maioria absoluta. Estabilidade previsível. Presidente cooperante. Oposições incapazes de criar obstáculos à acção governativa. Tudo se conjugaria para ter esperança numa reforma global ou em melhoramentos profundos na Justiça. Mas não parece ser o caso. A avaliar pelo programa eleitoral do PS, transformado em Programa de Governo, a Justiça será uma vez mais desprezada. Nem sequer figura entre as “Doze Grandes Prioridades”. É realmente estranho que a Justiça não conste dessa lista. A persistente crise da Justiça, considerada por muitos a maior chaga da sociedade e do regime em que vivemos, não é prioritária. Será possível que os dirigentes políticos não se dêem conta do mau estado em que a justiça se encontra? Não percebam a desconfiança essencial dos cidadãos?
No panorama actual, brilham os processos dos políticos, dos corruptos, dos banqueiros atrevidos, dos empresários imaginativos e dos dirigentes de futebol. Todos os dias os cidadãos são estimulados a escandalizar-se com novos atrasos, novas corrupções e novos incidentes judiciais. Agora, a novidade é sermos surpreendidos com lutas e alvoroço envolvendo os magistrados e as instâncias de justiça. As lutas entre funções, magistraturas, tribunais e juízes fazem parte da crónica e até do crime. O processo judicial é ele próprio fonte de opacidade e de desigualdade. Estão em causa os sistemas de distribuição de processos, a transparência dos tribunais superiores e os processos de designação para os conselhos superiores. A instrução e o abuso das garantias e dos recursos contribuem para a crise.
Na retórica política, não faltam declarações sobre a importância da Justiça e a necessidade de a reformar. Mas, chegada a verdade da acção, a tibieza do legislador e dos governos é chocante. Ora, é sabido que a Justiça influencia todas as áreas importantes da vida colectiva. O crime, a vida de cada um, a ordem pública, a tranquilidade e a propriedade dependem da Justiça. A família, o poder paternal, a violência doméstica, a igualdade de género, a saúde pública e a educação dos filhos dependem da Justiça. A honestidade, a honradez na vida colectiva, a transparência da informação, a corrupção e a integridade dos agentes da administração dependem da Justiça. A democracia, a desigualdade social, a igualdade de direitos, a protecção das liberdades, a defesa da privacidade e o respeito pelo indivíduo dependem da Justiça. Até o sistema político, a administração pública e os grandes serviços públicos, a liberdade religiosa e a igualdade racial dependem da Justiça. Ora, em quase todas estas áreas, a Justiça é deficiente e inadequada.
Sabemos, em poucas palavras, que a Justiça é lenta. Injusta. Socialmente desequilibrada. Cara. Parcial. Elitista. Ineficaz. Incompreensível. Complicada. Burocrática. Complacente com a corrupção. Por vezes mesmo ela própria corrupta. Permissiva. Amiga das portas giratórias para os magistrados que circulam entre os tribunais, os gabinetes políticos, as empresas públicas e os órgãos de confiança política, como tão justamente denunciam Maria José Morgado ou Manuel Soares. Toda a gente sabe. Mas o imobilismo é a regra. É difícil encontrar quem, no sistema judicial, na assembleia legislativa e no governo, queira estudar e organizar um movimento de reforma e uma acção de melhoramento profundo.
Verdade é que é raro encontrar quem confie na justiça portuguesa. Há muitos anos, três ou quatro décadas, os inquéritos de opinião e de confiança colocavam os magistrados em primeiro lugar. Antes dos médicos, dos polícias, dos professores, dos jornalistas… E dos deputados, previsivelmente. Nos últimos anos, tudo mudou e as escalas quase se inverteram. Os magistrados vêm muitas vezes em último lugar.
Não valeria a pena que os órgãos de soberania mais responsáveis, Parlamento, Presidente ou Governo, tomassem as iniciativas necessárias a fim de, em poucos anos, mudar a face da justiça? Não seria interessante que as instituições judiciais, os tribunais e os conselhos superiores, as organizações profissionais, a imprensa e as universidades se interessassem por este processo de renovação da justiça? Não seria luminoso tentar responder com verdade às perguntas difíceis? Quais são realmente os obstáculos à mudança na Justiça? Quais são os interesses corporativos, profissionais, políticos e económicos que impedem a reforma da justiça? Quais são os alçapões, as armadilhas e as ciladas do sistema que deliberadamente protegem os poderosos, acarinham os políticos, defendem os corruptos, ajudam os ricos e amparam os criminosos? Por que razões as custas judiciais são elevadas e a Justiça é cara e desigual? Em que é que as “portas giratórias” favorecem o imobilismo e mantém os privilégios? Quais são os factores que favorecem as prescrições e protegem o atraso?
O que é mais urgente? A morosidade ou a impunidade? A ineficácia ou a desigualdade? Por que razões os piores processos, os mais longos, os mais confusos, os mais complacentes com as fugas de informação e com as violações dos segredo de justiça são os casos que envolvem ricos, poderosos, políticos, altos dirigentes da Administração Pública e empresários da banca, do futebol e das obras públicas? Por que razão o alucinante sistema de recursos e garantias favorece sempre os poderosos? Por que razões a lei e o sistema parecem tão frequentemente proteger os criminosos mais do que as vítimas? Por que motivos o poder político persiste em não dar, à Justiça, recursos financeiros, equipamentos e pessoal técnico à altura?
É necessário adaptar a Justiça portuguesa à democracia e à liberdade. À Europa e aos direitos dos cidadãos. À nova sociedade civil e à globalização. Ao capitalismo e à economia de mercado. Ao Estado de protecção social. Ao universo digital. Ano após ano, década após década, a Justiça foi ficando para trás. Não ficou imóvel, com certeza, mas moveu-se sempre de modo insuficiente. No fim de cada ano, no termo de cada legislatura, a Justiça ficou sempre aquém do necessário. E mais injusta.
Público, 2.4.2022
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Falsificação de documentos e infidelidade representam a maior parte da quase meia centena de crimes que estão em risco de prescrever. Só a Ricardo Salgado podem vir a estar prescritos cerca de 15 crimes.
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