16.9.23

Grande Angular - Habituamo-nos a tudo

Por António Barreto

Será realmente verdade que nos habituamos a tudo? Ao bem e ao mal, sobretudo a este último? Será real esta triste sina? Será verdadeira esta maldição que nos diz, em resumo, que nos habituamos, que deixamos correr, que acabamos por considerar um mal necessário, que estimamos que não há nada a fazer, que temos a certeza de que poderia ter sido pior…?

 

Será sempre assim, como com as ruas de Lisboa, que acabamos por considerar normais e até em estado razoável? Com estas ruas sujas, mal varridas, com lixo nos passeios, restos de obras por todo o lado, buracos na calçada e no piso, móveis velhos, erva daninha nos passeios, sarjetas entupidas, fios eléctricos e de telefone pendurados nas casas e nos telhados…. É inevitável? Terá de ser sempre assim? Não conseguimos fazer melhor? Habituámo-nos de tal maneira que já nem sequer vemos ou sentimos o que está diante de nós, que pensamos que é inevitável, que é normal, que nem tudo se faz num dia?

 

É forçoso que, há décadas, não haja praticamente início de ano lectivo sem furos nos horários, sem falta de professores e sem obras inacabadas? É realmente impossível impedir que haja dezenas, centenas ou milhares de professores colocados ao Deus dará, a dezenas ou centenas de quilómetros de casa, longe dos filhos, dos maridos e das mulheres, em quartos esquálidos, sem sala de estar nem mesa de trabalho? Não é possível prever, com antecedência, a colocação de professores com algum sentido humano, a fim de permitir, não privilégios ou benesses, mas tão simplesmente uma vida asseada, com algum repouso que ajude ao trabalho pedagógico? O facto de Portugal ter quase eliminado o analfabetismo, com 150 anos de atraso, é suficiente para considerarmos normal esta miséria pedagógica, este atropelo administrativo, este permanente desaire escolar, este constante desatino educativo?

 

É inevitável que as administrações escolares e sanitárias não sejam capazes de prever a demografia dos professores e dos médicos, dos enfermeiros e dos alunos, dos auxiliares e dos estudantes, a fim de antecipar a reforma, a mudança de gerações e a mobilidade espacial? Temos mesmo de nos habituar a esta vida indigente em que faltam professores, médicos e enfermeiros? É normal que quantos mais médicos e professores há, mais faltam?

 

Estaremos de tal modo intoxicados que acabamos por considerar normal que as administrações não consigam prever as necessidades de profissionais, de mão de obra, de técnicos, de especialistas, designadamente de médios e professores? A resignação é de tal modo fatal que somos incapazes de reagir ao número crescente de emigrantes, de técnicos, de especialistas e de universitários que se vão embora com a certeza de terem sempre melhores oportunidades, mesmo se à custa do sacrifício das migrações?

 

Será que vivemos em paz e dormimos tranquilos quando sabemos, sem qualquer dúvida, que há milhares de asiáticos, de árabes, de africanos e de latino-americanos a serem explorados nas piores condições imagináveis, nos endereços “marados” e de conveniência, nas plantações inexistentes, nas estufas de ficção e nas empresas de fantasia?

 

Vivemos em paz quando tomamos conhecimento de que em muitos endereços disfarçados há, num quarto ou num rés-do-chão, dezenas de domicílios fantasma, para enganar os serviços de estrangeiros e de identidade que se querem deixar enganar? Somos capazes de passear à beira-rio, em tranquilidade, sabendo que àquela mesma hora centenas ou milhares de asiáticos, em condições confrangedoras, trabalham nas culturas forçadas, fazem vindimas pela noite fora, arrancam cortiça, trabalham no tomate, na flor e na batata, em condições simplesmente inaceitáveis e condenadas por todos os tratados e convenções internacionais que Portugal subscreveu?

 

Temos mesmo de nos habituar a ouvir ministros, vizinhos da imbecilidade, garantir que estamos a viver melhor do que há 50 anos, que estão a ser preparados planos, que os prolemas estão identificados, que as situações mais graves estão sinalizadas, que as estratégias  estão a ser preparadas, que novos grupos de trabalho estão a ser criados, que novos recursos financeiros vão ser libertados, que estão todos a trabalhar a fim de que as filas de espera nos hospitais diminuam, que os professores vão ser colocados, que as escolas vão abrir a tempo e horas, que os professores não ficarão a saltar de casa em casa e de região em região durante cinco, dez, quinze anos?

 

Apesar de haver mais de uma centena de Observatórios, digo bem, uma centena, para tudo quanto existe à face da terra, Migrações, Saúde, Educação, Racismo, Transportes, Descentralização, Pobreza, Desigualdade, Estrangeiros, Envelhecimento ou Nascimentos, apesar disso, estamos mesmo condenados a nunca acertar nas previsões, nunca colocar professores a horas, nunca formar médicos a tempo, nunca contratar enfermeiros suficientes, nunca construir residências universitárias que bastem e nunca julgar criminosos a tempo? Temos de nos resignar a esta espécie de DNA fatal das autoridades políticas portuguesas que consiste na incapacidade de prever, na impossibilidade de agir a tempo e na dificuldade em preparar profissionais e recursos?

 

Será que nos habituámos de tal modo à incompetência, à ineficiência e à desigualdade que já não reagimos aos atrasos da justiça, aos anos e anos de espera por que um rico, um político, um malandro ou um poderoso sejam julgados?

 

Será razoável habituarmo-nos às filas de espera diante das lojas do cidadão, das repartições de finanças, dos serviços de segurança social e de outras repartições da educação, da saúde e da justiça, de Verão e de Inverno, com chuva ou com sol, como cidadãos ordeiros e contribuintes obedientes?

Somos obrigados a aceitar como hábito este desaustinado caminho em que se produz pouca riqueza, em que se cria pouca empresa e se melhora pouco, mas onde, à falta de fazer mais e melhor e na impossibilidade de ter casa e comboio, escola e hospital, distribuem-se vales e bónus? Temos mesmo de nos habituar a crescer devagar, a desenvolver lentamente e a melhorar pouco, tão pouco? Temos de nos contentar com pouco, menos do que os outros? Temos de ficar satisfeitos e gratos com o melhor do que nada? Mesmo?

 

Má sorte a de sermos um país pobre e pequeno! Triste sina a de sermos mal governados! Sombrio destino o desta estranha forma de vida tão cheia de pobreza e de resignação! E, pior que tudo, este jeito tão nosso de nos habituarmos a tudo! 

 

Público, 16.9.2023

 

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