7.10.23

Grande Angular - Datas, comemorações e liturgia

Por António Barreto

Em grande parte, e cada vez mais, as comemorações nacionais servem para enviar recados. Dos Presidentes da República, dos Primeiros-ministros, dos Presidentes de Câmara, dos chefes militares… De todos os que têm ou julgam ter qualquer coisa a dizer, alguém a quem atacar ou alguma coisa a criticar. A ideia de que comemorar a República deveria ser comemorar a República é muito pouco seguida. Os que comemoram pretendem endereçar flechadas a amigos e inimigos. Aliás, o número de oficiantes é cada vez maior, pois é uma maneira de marcar território. Também aumenta o número de oficiosos, perante a diminuição do público. Este último, diante do absoluto desinteresse dos procedimentos, é reduzido.  Até fisicamente, na praça habitual, cresce a distância entre oficiais e público.

 

Comemorar a República, hoje, é totalmente destituído de significado. Aliás, a própria origem do fenómeno é já de si suspeita. É verdade que a Monarquia, em 1910, estava pelas ruas da amargura, a merecer substituição. Mas, assassinatos de chefes de Estado e de governo, guerras civis durantes anos, prisões arbitrárias e terror de Estado, desordem nas ruas, falência económica e financeira e instabilidade de regime não são propriamente razões para comemorar o que quer que seja. Se acrescentarmos a perseguição religiosa, a repressão dos sindicatos e a participação trágica e caricata de Portugal na 1ª Guerra mundial, teremos um quadro quase completo do que comemoramos hoje. Pobre país que necessita de tão medíocres e tão equívocos factos para se festejar! Louvar a República, durante a ditadura, poderia ter sentido. Hoje, é inútil e desajustado.

 

É verdade que as liturgias nacionais são sempre assim. Convenções, vacuidade de pensamento e inutilidade da política levam a que se estabeleçam regras geralmente artificiais. Às vezes, como no caso do 10 de Junho, nem sequer há factos incontestados para comemorar: são meros acasos oportunistas. Outras vezes, são datas e factos razoavelmente travestis. Mesmo o derrube da ditadura, a 25 de Abril, ocorrência certa e segura, serve sobretudo para ajustar contas em público, mas com ar de cerimónia e boa educação. Outras datas, como a do 25 de Novembro, são vergonhosamente apagadas, pois não servem os intuitos inconfessáveis dos poderosos do dia.

 

O 5 de Outubro serve para alguns titulares de cargos oficiais e de partidos distribuírem punhaladas e indirectas. Mesmo se, como raramente acontece, com qualidade literária, os discursos do 5 de Outubro são perfeitamente inúteis. Até quando têm sentido da oportunidade, as proclamações do 5 de Outubro morrem no dia seguinte.

 

Apesar de tudo o que se diz, mau grado boas intenções e não obstante a virtude de alguns discursos, a verdade é que o 25 de Abril é cada vez mais a data de arremesso da esquerda contra a direita, enquanto o 25 de Novembro é o ricochete da direita contra a esquerda. O que os socialistas estão fazendo é inaceitável. Eles querem separar o que sabem ser contínuo: o 25 de Abril iniciou, o 25 de Novembro salvou e as eleições fundaram. É pena que assim seja, pois são todas boas datas. Já os nefastos 28 de Maio, 28 de Setembro e 11 de Março, apesar de haver quem as queira recordar, morrem devagar na sarjeta da história. O 1 de Dezembro já não existe, a não ser para nostálgicos de outras gestas. O 1 de Maio é um dia de férias, não um feriado. O 11 de Novembro, que já foi data, é um esquecimento. Sobram as datas religiosas e similares que, essas sim, pelas romarias, ainda têm clientes e seguidores. As festas do Senhor dos Passos, da Senhora da Agonia e do Avante têm mais apelo e carisma do que qualquer data nacional, oficial ou patriótica.

 

Por mais pesados que sejam os discursos, não é possível deixar de pensar na sua inutilidade. E no facto de serem vícios de liturgia e oportunidade. Até as candidaturas aos partidos e a futuras eleições são tema e pretexto. Comentadores e jornalistas estão à espera de uma só coisa: dos recados, das indirectas e das mensagens cifradas. Ouviu-se o Presidente da República, mas pensava-se no Primeiro-ministro. Escutava-se o Presidente da Câmara, mas a presença era a do líder do PSD. Ouviram-se todos, a pensar no partido Chega.

 

Comemorar é hoje fazer discursos! O mais penoso, nestas cerimónias, são os lugares-comuns. São em menor quantidade no 5 de Outubro, só há dois oradores. Mas a sua densidade é mesmo assim elevada. Os “clichés” mais habituais repetem o “mantra” mais famoso: não podemos esquecer os jovens. Outros divagam sobre as necessidades de fazer pedagogia: ensinar a democracia nas escolas e explicar a toda a gente, sobretudo os mais jovens, os feitos da democracia e a bondade da República! No dia em que os virtuosos republicanos tenham ensinado a democracia aos jovens e tenham publicado manuais sobre a democracia, nesse dia, final e felizmente, a democracia vencerá! Este último 5 de Outubro, um pouco mais denso e de mais recorte literário do que habitualmente, não escapou à tradição. Com mais condimentos: os próprios oradores desvalorizaram o poder da palavra, sugerindo que era a acção que podia salvar a democracia. Avisaram contra os perigos e garantiram que a democracia corria perigos. E alertaram para os riscos do atraso de reformas.

 

Estas longas listas de lugares-comuns, de frases repetidas sem pensar e de fórmulas de retórica vazia são um inimigo mortal da inteligência, é evidente, mas também da liberdade. Uma das maneiras de destruir a democracia consiste em alimentá-la de lugares-comuns. Ou em deixar que os rituais percam razão e sentido, deixem de ser úteis ao equilíbrio das sociedades e da vida em comum.

 

Há rituais necessários. Como os que servem propósitos e fazem com que se respeitem regras. A democracia é isso mesmo: uma convenção que se deve respeitar. Desde que não seja destituída de razão, uma liturgia serve objectivos. Entre outros, o de recordar a origem das normas e dos valores. Ou então, tornar comuns certos hábitos. A força dos rituais é tal que, por vezes, nem é necessário recorrer à lei. Há costumes que se impõem por si, porque são úteis e porque ajudam na vida colectiva. Recordar ou comemorar pode ter essa intenção: a de dar uma vida e um presente. Mas é muito fácil perder de vista a origem e a função das regras. Quando os rituais não são mais do que isso mesmo, só rituais, algo está errado. É, sobretudo a perda de sentido. Esse é o grande perigo: a vacuidade da política.

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Público, 6.10.2023

 

 

 

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