Grande Angular - Perigos, ameaças e fantasmas
Por António Barreto
O partido Chega é provavelmente a maior novidade do sistema político português e da história política recente. De importância parecida, mas efémero, foi o PRD dos anos oitenta. Ainda de grande significado, o quase desaparecimento do CDS e do PCP. De menor importância, mas ainda sem que se saiba o seu futuro, o Bloco de Esquerda. Com valor e longevidade por apurar, são a Iniciativa Liberal, o PAN e o Livre. E pouco mais. O Chega, com 12 deputados e 7,5% dos votos, em tão pouco tempo, merece atenção. Em menos de cinco anos, ultrapassou o Bloco e o PCP e é o terceiro partido! Mais do que isso, os valores atingidos nas sondagens, cerca de 20% actualmente, apontam já para uma realidade de peso. Mais ainda: o lugar que este partido ocupa no espaço público, nas redes sociais, no Parlamento e nas reuniões partidárias, fazem dele um fenómeno. Para muitos, uma ameaça. Para alguns, um perigo iminente. Para todos, um espectro. Como na Europa.
Sem qualquer dúvida, este partido é nacionalista, de direita, conservador, com veios de extrema-direita e laivos de xenofobia. É populista, diz-se agora. Tem sobretudo uma inteligência intuitiva afinada: mal surge uma deficiência, uma razão de queixa, um problema social, uma incompetência do Estado ou uma qualquer crise, logo André Ventura e o seu partido “saltam”, atacam o problema e denunciam os que entendem ser os responsáveis, isto é, todos os outros, sobretudo o governo e o PSD. Fome, greves, trabalho clandestino, crime, droga, pobreza, violência, miséria nas periferias, filas de espera nos hospitais, baixos salários em todos os sectores, nada escapa ao Chega. Corrupção, nepotismo, favoritismo familiar ou partidário são talvez as principais molas que o fazem reagir com prontidão e espalhafato.
Para muitos, é um partido fascista ou neofascista. De simpatias neonazis, evidentemente. E de antepassados salazaristas. Para esses, os responsáveis pelo seu crescimento são as forças de direita, assim como os partidos socialistas que mais não fazem do que a política da direita. Para outros, são variadas as explicações para este fenómeno. Na velha tradição marxista, trata-se de obra e graça do grande capital monopolista e da política do imperialismo. As contradições do capitalismo actual e a decadência do imperialismo americano exigem partidos deste género, dizem. Contra o simplismo desta teoria, elevaram-se opiniões, com outra dimensão epistemológica: este seria um partido tipicamente da pequena-burguesia, aquela que se encontra, sem passado nem futuro, entre o mundo do trabalho e o do capital. Sem ideologia de classe, um partido como este é atraído pela demagogia anticapitalista e sobretudo pela fúria anticomunista. Outras explicações, se assim se podem chamar, filiam este partido na mais pura tradição nacionalista, anti internacionalista, anticomunista e antieuropeia. Seria um partido do passado, contra a modernidade. Já agora, um partido com raízes rurais e católicas.
O partido Chega, pobre em doutrina e programa, oportunista e provocador como nunca se tinha visto em Portugal, beneficiando de arguto sentido da ocasião, é o resultado das deficiências da democracia. Das dificuldades do Estado providência e da democracia contemporânea. Da partidocracia reinante, à esquerda e à direita. Vive no abismo que cresceu entre os Estados e a União Europeia, por um lado, os cidadãos e as instituições, por outro. Caça e pesca nas águas turvas das comunidades nacionais em crise causada pela globalização. Nunca se ouviu justificar as suas causas na liberdade individual ou nos direitos dos cidadãos. Nunca se viu fundamentar a sua acção na democracia. O partido denuncia a democracia, não a enriquece nem alimenta.
O seu mais eficaz programa diz, em poucas palavras, que deve denunciar todas as crises, dificuldades e carências. Há sempre culpados para os problemas sociais. Protesta contra tudo e todos que reputa responsáveis pelo regime actual. Como ainda não tem currículo, nem experiência política, nem tradição autárquica, isto é, como ainda não deve nada a ninguém, denuncia e acusa todos e cada um. Propõe-se, com enorme despudor, privatizar o que está nacionalizado ou nacionalizar o que privado é. Expulsar, proibir e prender são verbos que conjuga com familiaridade. É partido com a inteligência suficiente para, sem doutrina nem programa, apurar as suas artes no protesto e na denúncia. Chora diante da pobreza, geme perante a corrupção. Escandaliza-se com a corrupção dos democratas. Desespera com a intervenção europeia, a perda de independência e a submissão aos interesses internacionais. Não se sente tolhido pela Igreja, nem pela Maçonaria. Não depende de patrões ou de sindicatos. Usará a democracia enquanto esta lhe for útil, para crescer, usufruir de espaço público, denunciar democratas e vilipendiar poderosos. Se, um dia, a democracia lhe impuser o respeito pelos outros, assim como o obrigue a seguir as leis e acatar a tradição, nesse dia, o mais provável é que atire a democracia às urtigas. A sua palavra de ordem é o mais medíocre dos clichés: “limpeza”!
Incapazes de derrotar a direita, os socialistas esperam que o Chega a divida. Querem que o Chega seja o seguro de vida da esquerda, tal como o PCP foi, da direita, durante os anos de ostracismo. Os comunistas e o Bloco limitam-se a denunciar o capitalismo e a culpar os socialistas, estimando que, se estes fizessem o que eles querem, o fascismo seria derrotado. Todos os partidos, sem excepção, deram um precioso contributo para a crescimento do Chega. No governo, os socialistas trouxeram causas ao Chega. Nos hospitais, nas escolas, nas fronteiras, nos transportes públicos, nos bairros periféricos e nos centros das cidades, os democratas estão a alimentar o Chega à mão. O desdém dos partidos democráticos pelo povo e pelas vítimas, pelos pobres e pelos necessitados, é uma linha de vida do Chega. Estes partidos agem como se os eleitores do Chega não fossem cidadãos como os outros. A democracia sem tom nem som, com preocupação pelas intrigas, é uma vitamina do Chega. O Chega não é um inimigo externo, não vem de fora da sociedade, muito menos fora do país: nasce das falhas e da miséria da democracia portuguesa. Jornais e televisões colocaram-no no centro do mundo. Os partidos democráticos fizeram dele o inimigo e a ameaça. Não cessam de a ele se referir. Talvez se queixem, um dia. Mas queixam-se da sua própria obra.
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Público, 10.2.2024
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3 Comments:
*Chegas-lhes bem!*
“””O partido Chega, …………………, é o resultado das deficiências da democracia.
Das dificuldades do Estado providência e da democracia contemporânea.
Da partidocracia reinante, à esquerda e à direita.
Vive no abismo que cresceu entre os Estados e a União Europeia, por um lado, os cidadãos e as instituições, por outro”””.
Caro António Barreto, então o que era de esperar?!
Quererá dizer «usted» que a situação política vigente é que DEVERIA continuar?!
“””Como ainda não tem currículo, nem experiência política, nem tradição autárquica, isto é, como ainda não deve nada a ninguém, denuncia e acusa todos e cada um”””.
Caro António Barreto, qual o currículo, a experiência política, a tradição autárquica de todos os outros Partidos políticos quando «entraram» na política”””?
“””Todos os partidos, sem excepção, deram um precioso contributo para a crescimento do Chega.”””
Caro António Barreto, com este diagnóstico tão perfeito, que mais queres que aconteça?
Quanto a mim, é deixar «zurrar» os sociais-fascistas e fascistas, e «os partidos democráticos» [os teus serão os meus (no entendimento, que não em filiação)]?) que tenham uns pinguitos de vergonha, que deixem de ser, descaradamente ou não, salafrários, e que aprendam, de uma vez por todos, o significado de espírito de missão!
Pior do que a falta de seriedade e de honestidade é a falta de integridade!
Desde a *Avenida Carvalho Araújo* mando-te uma saudação amiga.
M., dez de Fevereiro de 2024
Luís Fernandes
Na recente Convenção do Chega foi aprovada uma moção que propunha a revogação do chamado "acordo" ortográfico AO90. Deu-me algum alento e coragem para votar no Chega.
Curiosamente, e também infelizmente, o Programa eleitoral há dias publicado, apesar de redigido segundo a norma anterior, não tem uma palavra sobre o AO90.
Cumprimentos
Jorge Pacheco de Oliveira
Caro Jorge,
Salomonicamente, e perguntado sobre o AO 90, o nosso PR respondeu:
"Não uso, mas não condeno".
Genial!
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Seja como form TODOS os partidos fogem do tema — e fazem mal, pois até talvez lhes rendesse votos.
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