20.1.24

Grande Angular - Sonho de uma noite de Inverno

Por António Barreto

Dentro de pouco mais de uma semana, ficaremos a conhecer as listas completas de candidatos à Assembleia da República. São listas exclusivamente subscritas por partidos ou coligações de partidos. Movimentos, associações e grupos de cidadãos estão excluídos. Independentes também não se podem candidatar, a não ser que se submetam a fazer parte de uma lista partidária, o que quer dizer que estejam dispostos a perder a sua independência. A não ser que façam prova de fidelidade partidária, mais de dez milhões de portugueses não se podem candidatar a eleições legislativas.

 

O fabrico destas listas é um dos momentos mais polémicos da política portuguesa. Esse gesto traduz a realidade da vida partidária e das relações dos partidos com a sociedade. É através das listas que se pode escolher e sanear quem vai ser eleito, quem fica na vida política e quem é despedido. O dispositivo essencial das listas consiste na ordenação dos candidatos: são eleitos os que vêm à frente, são afastados os que vêm atrás ou ficam cá para baixo. Mas tudo depende, evidentemente, do número de votos que a lista recebe. Nos partidos com muita autoridade, tudo se passa sem ruído percebido pelo público. Nos partidos democráticos no poder, o clima é tenso, mas pacífico. Nos partidos democráticos na oposição, o momento é febril e adequado a ajustes de contas. 

 

De qualquer maneira, dos 230 deputados a eleger, 190 já estão eleitos. Já podem tomar providências, alugar casa ou reservar hotel em Lisboa. Foram as escolhas dos chefes dos partidos que decidiram o lugar em que estão nas listas e é assim possível saber já a maioria dos que são eleitos. Os cidadãos não escolheram absolutamente nada. A não ser os muito pequenos partidos que podem eleger alguns ou nenhuns deputados. Assim como os últimos 30 ou 40 deputados eleitos que vão compor os grupos e definir quem tem maioria. Na verdade, são estes que decidem a vitória eleitoral e respectiva amplitude. Justiça seja feita: o eleitorado ainda tem a escolha destes últimos deputados. Ou seja: escolhe quem vence, mas não escolhe quem o representa.

 

Há cinquenta anos, abstiveram-se cerca de quinhentos mil cidadãos. Há vinte anos, um pouco mais de três milhões.  E há dois anos, perto de cinco milhões e meio optaram pela abstenção. Melhor do que taxas e percentagens de abstenção, estes números brutos revelam um profundo mal-estar. De muitas democracias, com certeza, mas a nossa é a que nos traz aqui. Como toda a gente sabe, existe um problema muito sério, cada vez mais difícil, de legitimidade e de representatividade dos parlamentos eleitos.

 

E tudo poderia ser tão diferente! Poderíamos ter, neste 10 de Março, uma verdadeira revolução dentro da democracia! Poderíamos ter 230 círculos eleitorais, cada um elegendo, por maioria absoluta, um só deputado. Este seria alguém já conhecido pela comunidade, ou que passaria a sê-lo depois da campanha e da eleição. Seria um elemento da região, ou de sítio vizinho, ou mesmo vindo de longe (da capital, por exemplo) mas que se tinha apresentado localmente para ser seleccionado. Aliás, o “candidato a candidato” por um partido deveria ser seleccionado pelas assembleias dos partidos. 

 

O termo “o meu deputado” faria assim sentido para todos os deputados, com responsabilidades pessoais, contas a prestar, mandatos a receber, lutas a conduzir e batalhas a travar. O distrito de Lisboa, por exemplo, em vez dos actuais 48 deputados, uma verdadeira sociedade anónima que ninguém conhece em maioria, seria dividido em outros tantos círculos, cada um com o seu deputado, de acordo com a dimensão demográfica. O resto do país teria o mesmo tratamento.

 

O “meu deputado” seria o que foi eleito, evidentemente, poderia ou não ser do meu partido ou daquele em quem votei. Desde que é eleito, um deputado representa todo o eleitorado, não apenas o seu partido. Esse “meu deputado” teria reuniões regulares com os seus eleitores (os que quisessem estar presentes) e teria anunciado, à porta do seu gabinete e na NET, os dias em que receberia os seus eleitores que lhe apresentariam casos e poderiam assim elogiar, criticar e fazer sugestões ou reclamações.

 

O “meu deputado” poderia ser um membro do partido que eu apoiaria, ou de um outro partido que teria ganhado as eleições. Mas poderia também ser de um movimento cívico, de um grupo de defesa do meu bairro ou da minha cidade. Ou de um movimento de defesa da ecologia, do género, de uma religião, dos idosos, dos doentes ou de outro qualquer grupo de referência. Poderia até ser apenas independente absoluto, sem pertença a grupo, partido ou movimento, mas claramente conhecido, até para vencer as eleições.

 

O mais provável é que a maioria dos deputados eleitos pertencesse aos partidos estabelecidos. São eles que têm nome e meios, profissionais de campanha, história e interesses estabelecidos, referências de classe, religião, origem ou doutrina. Mas as relações de cada deputado com o seu partido mudariam de modo significativo. Os deputados saberiam que eram eleitos pelo que eram, ou também por isso, não apenas pelo nome do partido. O que quer dizer que teriam mais força e mais autonomia.

 

Ao mesmo tempo, os partidos saberiam que se não respeitassem os deputados e a sua liberdade, estes poderiam pura e simplesmente informar o eleitorado. Além disso, quando os partidos escolhessem as suas listas, teriam de ser muito mais exigentes e seleccionar os melhores, tanto do seu ponto de vista como dos interesses das comunidades. Caso contrário, perderiam a eleição. Ou os candidatos em questão apresentar-se-iam por eles próprios. As listas partidárias teriam de ser as melhores e não apenas o rol dos fiéis, dos que causam menos problemas à direcção do partido e dos que fazem o que lhes mandam e só isso. Os independentes e membros de associações ou movimentos teriam assim um duplo papel: o de serem bons representantes do povo e o de obrigarem os partidos a seleccionar melhor.

 

Tal como noutros países, este sistema eleitoral poderia funcionar a duas voltas, isto é, todos concorrem à primeira e, à segunda, passam os dois primeiros ou os que estão acima de uma fasquia determinada. Quer isto dizer que um deputado é sempre eleito com mais de 50% dos votos, o que confere legitimidade e consolida as maiorias. 

 

Não há milagre. Nem soluções mágicas. Mas os que se queixam de falta de proximidade da democracia, de afastamento dos políticos, de reduzida transparência do processo democrático e da legitimidade decrescente em tempos de abstenção em permanente aumento, deveriam pensar duas vezes. O sistema está feito para afastar, não para chamar.

Público, 20.1.2024

 

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4 Comments:

Blogger Bmonteiro said...

«Foram as escolhas dos chefes dos partidos»
Os boss, os mandarins do Mandarim mor.
Posto isso e o resto do artigo, para o 10 M:
Ficar em casa, ou
votar de forma a fazer abanar a barraca.
Chega, diz antigo eleitor (habitual) socialista.

20 de janeiro de 2024 às 21:18  
Blogger Carlos Antunes said...

A questão é que a proposta de António Barreto de um sistema maioritário a duas voltas (como o sistema francês) esbarra numa impossibilidade que é a de qualquer revisão constitucional se encontrar vinculada a respeitar o sistema de representação proporcional - alínea h) do artigo 288.º da Constituição sobre os limites materiais da revisão.

21 de janeiro de 2024 às 16:34  
Blogger José Monteiro said...

Carlos Antunes, na linha de Vital Moreira.
Portanto, perante uma Vaca sagrada.
De valor histórico, o ali referido à sociedade socialista, caso exemplar no planeta.
Entretanto, o mundo, ou regime, rola e rebola.
Noutra onda:
"As Configurações do Fim-Estrutura de fim de época e estrutura de fim de regime" conferência de Joaquim Aguiar, presente Adriano Moreira.
Que fazer, ou nada a fazer?

22 de janeiro de 2024 às 19:44  
Blogger Carlos Antunes said...

José Monteiro
Por amor de Deus, não me compare a um reputado constitucionalista como o Prof. Vital Moreira. Segui-lo, como diz que o fiz, apenas demonstra o meu respeito por quem sabe do que está a falar.
Limitei-me a dar a minha modesta opinião de que a proposta de AB esbarra nos limites materiais da revisão previstos na CRP de respeito pelo sistema de representação proporcional, que não é como afirma, nenhuma “vaca sagrada”.
É possível obviar ao problema levantado pelo AB – “dos 230 deputados a eleger, 190 já estão eleitos por terem sido escolhidos pelos chefes dos partidos que decidiram o lugar em que estão nas listas e é assim possível saber já a maioria dos que são eleitos” – respeitando o princípio de representação proporcional e aproximando os eleitos dos eleitores, pessoalizando a escolha dos deputados, através dos chamados círculos uninominais com um círculo de compensação nacional.
Trata-se de uma alteração do sistema eleitoral defendido, curiosamente, da direita à esquerda, com diferentes matizes (Ribeiro e Castro, IL, SEDES, António Vitorino, Álvaro Beleza, e também Vital Moreira).
Cordiais saudações

24 de janeiro de 2024 às 18:16  

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