11.1.24

“O CHEIRO DA MADEIRA”


Por A. M. Galopim de Carvalho

Em finais dos anos 80 tive oportunidade de ler o livro de Zélia Gattai, “Anarquistas Graças a Deus”, numa edição do Círculo de Leitores, de 1983. Como escreveu o crítico Álvaro Salema, trata-se de um livro de simples e profunda humanidade, colhido da memória, com singela pureza. Recordações de infância vivida numa família de emigrantes italianos, em S. Paulo, por volta dos anos 20 do século passado. Com grande simplicidade e realismo, sem pretensões de estilo literário, o texto flui agradavelmente em tom narrativo. Nesta obra, Zélia Gattai transporta, da infância para a maturidade, as suas vivências mais antigas, com um poder de simpatia contagiante.

No curto, mas entusiasmante prefácio, Jorge Amado, o seu marido há mais de três décadas, refere que, depois de ler um conto que ela escrevera durante uma estadia de ambos nas “aforas” (arredores) de Salvador, em finais dos anos 70, embora o conto lhe não tivesse interessado grandemente, encontrou nele elementos curiosos sobre a vida dos imigrantes italianos em S. Paulo, pelo que, conta ele, lhe disse: «Jogue o conto fora e escreva suas memórias de infância e adolescência. Descreva a vida em sua casa, a família, os amigos, os parentes, a rua, o bairro, a vinda dos avós e pais para o Brasil... tudo o que viveste e de que guardas memórias. Farás um livro único, um depoimento singular».

 

A leitura deste livro que me deliciou e, sobretudo, as palavras introdutórias do saudoso mestre da língua, no referido prefácio, despertaram-me uma vontade incontida de trazer ao presente as muitas memórias que tinha de uma infância e primeira adolescência ricas de acontecimentos, encorajando-me a passá-las ao papel. Tudo me motivava, até o facto de ter a mesma idade da autora ao escrever este seu primeiro livro. Nesta fase da minha vida eu era um professor universitário e investigador em Geologia e estava já bem familiarizado com o exercício mental e o acto mecânico de escrever (à mão), ao relatar entidades, processos e ambientes geológicos, formular hipóteses, e explanar ideias e teses, numa escrita clara e objectiva. Foi assim que, praticamente de um jacto, escrevendo quase sempre de madrugada, alinhavei as duas dezenas de histórias, mais ou menos ficcionadas na forma, mas rigorosas no conteúdo, o manuscrito a que dei o nome de “Reguadas, Orelhões e Orelhadas”.

Por essa altura, em começos da década de 1990, eu era um profissional, a tempo inteiro, de uma ciência demasiado terra-a-terra, em busca de um outro caminho, o da literatura. Foi aí que conheci Natália Correia, extraordinária e saudosa portuguesa, com quem tive o privilégio de conviver nos últimos anos da sua vida. Prenderam-me a esta açoriana a intransigência com que defendia a liberdade, a solidariedade e a justiça, o desassombro que usou na palavra falada e escrita, a força e a energia, características que sempre igualei às do também saudoso Ary dos Santos.

O caminho que então procurava tinha o dela e de muitos como ela, por modelo. Natália leu este meus primeiro escrito, arrumando-os num estilo literário que designou por “etnologia ficcional”, expressão que eu nunca imaginara e que me surpreendeu pela exactidão da análise. Nesta nova fase da minha vida, dera por mim a descrever pessoas, ofícios, utensílios, ambientes e modos de vida que vivi ou presenciei e que guardei quase intactos em recantos da memória. Fizera-o, sobretudo, ao sabor de uma certa, espontânea e desconhecida intencionalidade poética. Para tal, eu tinha que dar um primeiro passo e Natália deu-me o empurrão necessário.

O Prof. Agostinho da Silva, com quem convivi e de quem me tornei amigo ao recebê-lo por diversas vezes no Museu, leu o original, a meu pedido, e a opinião, que acerca dele, me transmitiu, não podia ser mais encorajante. 

O escritor Vergílio Ferreira, que conheci nos meus tempos de liceu, em Évora, leu igualmente o manuscrito, aconselhou-me a mudar o título, sugerindo-me o de “O Cheio da Madeira”, dada a importância que tivera para mim o ver trabalhar a madeira, e tentou, sem êxito, encontrar-me um editor. Eu sabia, e ele também, que os editores não se arriscam, comercialmente, com obras de autores desconhecidos. Lyon de Castro, a quem o meu conterrâneo Júlio Roberto levou o mesmo manuscrito, leu-o e, segundo este meu amigo, terá gostado e dito o que eu já sabia: «uma editora não é uma fundação de apoio à literatura». Eu conhecia-o pessoalmente e fizera, a seu pedido, a revisão da versão Portuguesa da “Grande Enciclopédia dos Minerais”, de Rudolf Dud’a & Lubos Rejl. A estima que tinha por mim era uma coisa, a sua actividade comercial era outra.

Nestas andanças, à procura de uma editora que aceitasse publicar o meu manuscrito (nesta altura, início dos anos 90, nem por via dos dinossáurios eu era pessoa conhecida), cheguei à fala com a Editorial Notícias que aceitou editá-lo, desde que suficientemente patrocinado. Uma vez que este livro procura ser um relato ficcionado de situações vividas na cidade de Évora, no segundo quartel do século XX, foi-me sugerido que procurasse obter o patrocínio da Câmara Municipal. Foi então que dei o manuscrito a ler ao meu muito amigo Dr. Abílio Fernandes que, de pronto, acordou com a editora os termos desse patrocínio.

A primeira edição de “O Cheiro da Madeira” saiu a público em 1993 e, conforme me comprometera com o autarca, fui a Évora, na companhia do Dr. Baptista Lopes, o editor, entregar à Câmara o cheque correspondente aos direitos de autor dessa primeira edição. Além do presidente da autarquia assistiu a este acto o Dr. Manuel Branco, então o vereador da cultura, que me perguntou que destino eu gostaria que fosse dado aquele cheque, uma vez que a Câmara não desejava arrecadar a correspondente quantia. Não tive dificuldade em responder: a Escola de S. Mamede, onde fizera a instrução primária. Inteirámo-nos das carências em material didáctico que pudessem ser colmatadas com aquela importância e, feitas as aquisições, fomos fazer a festa na escola onde, hoje, todas as crianças são felizes e andam calçadas e onde, no meu tempo, as reguardas estalavam por tudo e por nada e muitas crianças vinham de pé descalço. Algumas dessas crianças, nunca o esqueci, traziam um pedaço de cortiça para colocar entre os pezinhos e o ladrilho a ressumar humildade fria como gelo.

 

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1 Comments:

Blogger bea said...

Parabéns pelo livro. Suponho que contém curiosidades hoje insólitas e desconhecidas pelo que, bastaria esse motivo para torná-lo necessário. Também passei por essa escola; já não tnha alunos descalços, mas abrangia zonas muito pobres, era bastante evidente.

12 de janeiro de 2024 às 15:22  

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