Grande Angular - Estranha crise
Por António Barreto
Este fim de semana, os socialistas vão escolher o seu novo secretário geral. O eleito será, logo a seguir, candidato a Primeiro-ministro. Não é seguro, mas é possível que, depois, seja também Primeiro-ministro. O mais interessante, nesta eleição, é o facto de, entre dois dos mais sérios responsáveis pela política do governo desde há oito anos, a alternativa ser estranha.
Pode facilmente pensar-se que não houve, nem há, crise política muito séria. É possível entender esta eleição simplesmente como rivalidade pessoal. Não custa a acreditar que os socialistas estejam persuadidos da bondade deste governo durante oito anos, para já não pensar nos seis anteriores de José Sócrates. Imagina-se que os socialistas não estão convencidos de que são eles os responsáveis pela grave crise dos serviços públicos fundamentais (saúde, educação, justiça…). É tudo possível. Na verdade, com a eleição deste fim-de-semana, os socialistas apagam os erros recentes e consideram-se prontos para um novo e virginal recomeço. As próximas eleições nacionais, as legislativas, serão bem diferentes.
A escolha do novo Secretário-geral sugere uma decisão entre dois mundos, dois estilos e duas pessoas. É possível. Mas não será, como deveria ser, uma escolha entre duas políticas. Teremos, do lado de José Luís Carneiro, a sonolência democrática, a gestão conservadora e a obediência às regras. Do lado de Pedro Nuno Santos, será o sonho ideológico, a exaltação adolescente e o puro abuso de poder. Um gere, o outro faz. Não se sabe bem o quê, nem quando, nem como. Mas, no mundo despolitizado, estes vícios são virtudes.
Que querem eles fazer para acudir ao desastre do Serviço Nacional de Saúde? Como pretendem lutar contra a crise da habitação? Que farão a favor da igualdade social? Quais são as suas ideias e os seus planos para tratar da instabilidade e da ineficácia da educação? Como querem tratar do investimento privado? Quais são as suas políticas para a Justiça, a segurança e as polícias? Como explicam a profunda crise, inédita nas últimas décadas, nos serviços públicos? Não se perca tempo: não sabem. Ou não dizem. Ou não querem que se saiba.
A competição é adjectiva. Estão em causa procedimentos, processos e intenções. Além das aparências e da imagem, visivelmente diferentes, algo os separa radicalmente. José Luís Carneiro sonha com o partido bem-comportado, capaz de diálogo, com provável preferência pelas políticas centrais, eventualmente mesmo as do “bloco central”, entidade detestada pela vida política nacional. Pedro Nuno Santos anseia por um partido de rupturas políticas e fracturas sociais, idealiza a grande coligação das esquerdas, vive para os restos da revolução que confunde com sonhos.
Os dois candidatos esforçam-se por ser solidários com o governo e a maioria a que ainda pertencem e de que são, aliás, dos mais responsáveis. Mas não querem ser identificados com esse governo. Mas também não querem ser acusados de detractores. Gostariam de ser considerados como alternativas críticas a esse governo, sem que se perceba muito bem que o são. Ambos querem ser alternativas a António Costa e ao governo actual. Mas ambos sonham com o apoio de António Costa e o respeito pelo governo actual. Já toda a gente percebeu que tanto um como outro farão a diferença, mas não querem que se saiba.
É uma eleição adjectiva. Quem é mais à esquerda? Quem é mais dialogante? Quem ocupa melhor o centro? Quem está com mais capacidade para fazer alianças? Quem combate melhor o grande fantasma da próxima eleição, o Chega? Quem é mais alternativo, fazendo crer que é a continuidade? Quem é mais continuador, dando a entender que é a ruptura?
Muito mais estranho do que esta eleição socialista é a crise nacional. Em certo sentido, a eleição socialista é parte da crise nacional. Poderá um dia figurar nos anais da história como a “crise italiana”. Só que não se sabe se florentina, se siciliana. Verdade é que esta crise nasce e desenvolve-se por exclusiva vontade dos seus protagonistas e dos seus perpetradores.
É uma crise inútil, resultado das últimas versões do semipresidencialismo e da competição entre órgãos de soberania (magistratura incluída…). É difícil perceber, hoje, quem será a principal vítima desta crise, se o Governo de São Bento, se o Presidente de Belém. Mas podemos ter a certeza de que se trata de crise inútil e de paixões menores. Ainda não se conhecem os factos e as datas com indiscutível certeza. Mas já se percebeu que grande parte destas operações foi de denúncia premeditada, de revelação calculada e de sentido apurado de circunstâncias e de cronologia. Ninguém sai bem destas histórias. Dos “Influenciadores” às “Gémeas brasileiras”, as trapalhadas foram tais que nos envergonham.
Corrupção, cunhas, favoritismo, nepotismo e amiguismo, há de tudo em quantidade. E mais uma vez há a fragilidade da justiça, a vulnerabilidade dos sistemas de honra e a debilidade dos procedimentos honestos. A vida política portuguesa parece feita e imaginada por um espírito mau, diabólico e maquiavélico, que quis criar as condições para a destruição da democracia. A eleição proporcional, o estabelecimento da disciplina de voto, a hegemonia dos partidos, a perversão semipresidencialista e a fraqueza das instituições civis são estímulo à corrupção e protecção dos corruptos.
É uma crise para ficar na história. Não se percebe quem ficou a ganhar. Nem quem perdeu. É mesmo provável que não haja realmente vencedores. Todos perdem, a começar pelos portugueses. O que é que Marcelo Rebelo de Sousa vai retirar destas crises? O que é que António Costa vai lucrar? O que é que os ministros, os partidos políticos e as instituições ficaram a ganhar? Pode repetir-se: todos ficaram a perder.
Têm medo da revolução? Do regresso dos comunistas e dos soldados revolucionários? Receiam a extrema-direita e os fascistas? Abominam os justicialistas e os virtuosos de vão de escada? Assustam-se com o crescimento do partido Chega? Vivem apavorados com o surgimento e o crescimento de grupos e partidos estranhos, extremistas, vingadores, puros e totalitários? Têm pesadelos com poderes autoritários e purificadores que destroem as liberdades públicas? Vivem apavorados com a hipótese de surgirem no horizonte movimentos de salvação? Então olhem para onde devem, para a ausência de justiça, para a opacidade do sistema político, para o privilégio partidário, para o segredo de Estado, para a corrupção e para o nepotismo. Olhem e vejam-se ao espelho.
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Público, 16.12.2023
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