2.12.23

Grande Angular - Vésperas sicilianas

Por António Barreto

Eleições! É do melhor que a democracia tem a oferecer. São ricas a despertar sentimentos e emoções. Ânimos e medos. Entusiasmos e mentiras. Ciúmes e alianças. Por vezes, também, razão e responsabilidade. É possível que as eleições não sejam necessariamente bons momentos criativos, nem sequer boa fonte de soluções. Mas uma coisa é certa: sem eleições, não há democracia. Em períodos de calma ou de agitação. Em ocasiões de paz ou de conflito. A eleição é sempre um passo solene. Mesmo quando não traz imediatamente soluções.

 

A preparação de eleições, já o sabemos há muito, provoca o melhor e o pior nos políticos. E em muitos eleitores também. As vésperas das eleições são momentos particularmente pródigos em surpresas, em pulhice e em revelações sórdidas. Neste nosso tempo, nada nos faltará, como já se pode ver.

 

Todas as eleições são importantes. E decisivas. Mas há umas mais do que as outras. Temos diante de nós uma dessas, tão essencial quanto todas as outras, mas mais determinante do que muitas. Tão perigosa nos seus resultados, como nos seus processos. Por razões nacionais e por motivos internacionais, estas eleições vão decorrer em momento de enorme tensão.

 

No mundo, é aflitiva a dificuldade em estabelecer acordos vitais, como sejam os relativos ao clima. Alguma coisa se fará, tarde ou cedo, mas será insuficiente. É inquietante a impossibilidade de se chegar a um acordo mundial razoável. A divisão do mundo não estava assim há décadas. Mau prenúncio!

 

Na Ucrânia e na Europa Oriental, em Israel, na Palestina, no Mediterrâneo e no Próximo Oriente, as coisas vão de mal a pior. Estes conflitos tiveram a capacidade de dividir o mundo. Dentro da União Europeia. Entre a Rússia e os Estados Unidos. Entre os Estados Unidos e a China. Entre a democracia e a autocracia. E temos ainda um quadro geral de dificuldade económica, de regresso ao proteccionismo, de aumento das desigualdades sociais e entre países.

 

Em Portugal, não teremos evidentemente qualquer influência nos problemas acima referidos. Muito menos nas soluções. Mas todos aqueles terão enormes consequências em Portugal. Como o agravamento da situação económica e o descontrolo dos movimentos migratórios.

 

Neste quadro geral, imprevisível e ameaçador, vamos a eleições. Inesperadas. Atabalhoadas. Eleições que provocarão, inevitavelmente, alterações no panorama político. Mas também causarão mudanças na definição programática dos partidos e respectivas direcções.

 

São grandes os riscos que corremos com estas eleições. O primeiro é o da divisão do país e do eleitorado como raramente foi o caso. Talvez como nunca. Paradoxalmente, as experiências de maioria absoluta (Cavaco Silva, José Sócrates e António Costa) não dividiram o país em dois blocos. Foi sempre possível ver, à direita ou à esquerda, uma salutar diversidade. Que tinha como principal efeito o de não misturar as esquerdas (democrática e não democrática) nem as direitas (democrática e não democrática). Agora, o desastre da divisão está na esquina da rua. Na direita e na esquerda, as forças de aglomeração crescem e ganham importância. Apesar da boa fama de que goza esta divisão, conhecida como bipolarização, a consolidação dos dois blocos é anúncio de catástrofe. Se as direitas (democráticas e não democráticas) e as esquerdas (democráticas e não democráticas) se unirem, temos desastre à porta.

 

Muita gente refere a probabilidade da fragmentação partidária. Quer isto dizer, a redução do peso eleitoral dos dois grandes partidos e a multiplicação dos pequenos e médios. Diz-se que esta situação torna o país ingovernável. Pode ser verdade, o que é mau. Mas pior ainda será o estabelecimento de blocos federados, à esquerda e à direita. Com uma agravante: sem força dominante, estes blocos são o reino da chantagem e das artimanhas.

 

Risco é ainda a impossibilidade futura da revisão constitucional. A que estava em curso não era grande coisa, nada queria fazer de essencial (o sistema eleitoral, por exemplo), mas havia uma energia salutar. Tudo isso acabou. Para recomeçar, seria necessário um esforço do centro político, desde que este exista no Parlamento e tenha eco no eleitorado. O que parece pouco provável.

 

reorganização dos dois grandes partidos já está em curso. No PSD, a conversa é a de uma maioria abrangente, no PS é a de uma estratégia de união das esquerdas. Ninguém se esforça por uma maioria absoluta. Também é verdade que ninguém a merece. Verifica-se o esvaziamento doutrinário dos dois partidos, que será combatido por uma reafirmação de programa e de prioridades. Vão estar em causa as preferências internacionais (UE, NATO, CPLP, Ucrânia, Israel, Palestina e EUA), as políticas de imigração, o papel da empresa privada, o Serviço Nacional de Saúde, a política de educação, a Segurança Social e a Justiça. Que ninguém duvide: os dois grandes partidos e os eventuais grandes blocos vão rever tudo isso. Para o melhor e o pior. A social-democracia e o socialismo democrático preparam uma revisão profunda. Feita mais por pressão do oportunismo eleitoral do que por evolução doutrinária.

 

Risco também é o de se proceder a um reforço dos lados negativos do semipresidencialismo, isto é, do conflito entre órgãos de soberania e da interferência do Presidente da República. Os sinais dados pelos primeiros mandatos de Mário Soares e de Marcelo Rebelo de Sousa são hoje longínquos e parecem pertencer à ficção. Tal como num vulcão adormecido, o pior do semipresidencialismo, os seus inúteis conflitos, volta à actualidade.

 

As eleições, sobretudo as controversas, são oportunidades para as mais inesperadas operações. Este ano, estamos bem servidos. Intervenções de ministros estridentes não faltaram. Manobras com grandes serviços e empresas públicas foram muitas. Iniciativas inusitadas dos altos poderes judiciais surpreenderam toda a gente. Tremores nos grandes processos adiados, Operação Marquês, Face Oculta, Influencers, Sócrates, Salgado, Pinho, Berardo e outros sucedem-se.

 

Parece ser neste universo pré-eleitoral, de revisão disfarçada e de reorganização partidária, que se pode incluir a revelação do caso das “Gémeas brasileiras”. Ou toda a gente se portou mal, ou toda a gente mentiu, ou ambas as coisas. Raramente se viu em Portugal história mais mal contada. É possível que, entre os mencionados, haja inocentes. Mas nem esses conseguem defender-se com clareza. Confirma-se: vésperas de eleições, tempos de traições!

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Público, 2.12.2023

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