18.11.23

Grande Angular - Corrupção e impunidade

Por António Barreto

Nos anos a vir e nos seguintes, assim como na história futura, esta semana, estes tempos e os próximos ficarão para sempre. Inesquecíveis. De triste recordação. E de inquietação crescente. Entraram em crise elementos básicos da confiança e da esperança. A certeza das instituições, a serenidade das elites e a segurança da justiça falharam. Ou não deram garantias. O Estado de Direito foi posto explicitamente em crise.

 

Descobrem-se em abundância casos de corrupção e favoritismo. São ordenadas detenções apressadas e mal fundamentadas. Reinam as fugas de informação e as violações do segredo de justiça. Uma reunião confidencial do Conselho de Estado, um dos últimos redutos da serenidade, é desvendada. O Primeiro ministro demite-se de modo incompreensível. A dissolução do Parlamento não é cabalmente justificada. As decisões do Ministério Público e da Procuradora Geral revelam ligeireza e leviandade. Um Parlamento dissolvido, a prazo, aprova um orçamento de Estado, a correr, antes de partir para campanha eleitoral. Um governo demitido, a prazo, aprova aumentos da Função Publica e do salário mínimo. Um ministro demitido, a prazo, pretende resolver, à pressa, a crise dos médicos e da saúde.

 

O Primeiro-ministro e outros governantes sugerem que, em certos casos, a necessidade política e as exigências da vida económica podem obrigar a ponderar o sentido da aplicação da lei. Parece que basta o rigor legal na decisão, sendo que a aplicação prática das leis obedeceria a outros critérios, designadamente do interesse público definido pelos próprios políticos. É possível que nunca se tenha ido tão longe, nas últimas décadas, no desrespeito pelo Estado de Direito.

 

Por vezes importa tomar um pouco de distância. Como se pode corrigir? Que se pode fazer para melhorar, punir e prevenir? Pouco. Muito pouco. Talvez nada a curto prazo. Talvez alguma coisa a longo prazo. Com outras gerações. Mais leis, não vale a pena. Já temos e a mais. Formar novo pessoal político e novos magistrados? É possível. Demora décadas e coloca sempre o problema existencial: quem forma o pessoal e quem forma os formadores? Liquidar a democracia? Não resulta, pois já sabemos que a ditadura e o populismo são, sempre e em todo o sítio, piores do que a democracia.

 

A nossa democracia não conseguiu, nas áreas da corrupção e da justiça, ser melhor do que a ditadura. Tem mil vantagens. É superior em muitos aspectos, na liberdade, nos direitos individuais, na dignidade das pessoas, na cultura, na educação, no trabalho e na saúde. Mas na justiça e na corrupção não consegue ser melhor. Até porque, com o capitalismo, a democracia e a sociedade aberta, há mais corrupção e mais interesses. Mais e mais democratizados. O nacionalismo demagógico, o justicialismo virtuoso e a ditadura puritana são sempre e serão piores do que a democracia. A história de Portugal e do mundo demonstra-o nitidamente.

 

A situação, na justiça e na política, por causa da corrupção e do favoritismo, está má. E vai ficar pior. E não tem cura tão cedo. Pessimismo? Nem por isso. Realismo, talvez. A sociedade e as instituições não são melhores do que as classes dirigentes e ilustradas. Nem melhores do que os políticos. E estes não são melhores do que a sociedade em que têm origem. E é mesmo isso que é crítico, é esse o problema: das classes dirigentes, das elites, esperava-se mais e melhor!

 

Portugal sofre, há décadas e séculos, de peste de país pobre, de povo sem liberdade e de país dependente do Governo. Sem liberdade, sem democracia, sem imprensa livre, sem empresas poderosas, sem mercado e sem sociedade aberta, cultiva-se facilmente a corrupção, o nepotismo e o favoritismo. A “cunha” e o “jeitinho” fazem parte do quotidiano. A “palavrinha” e o “empenho” são modos de vida. A nomeação de parentes e de correligionários também. Passar à frente nas filas de espera ou nas competições é usual. Abrir concursos “com fotografia”, isto é, que só podem ser ganhos por pessoa certa, é uma arte. Rechear os gabinetes com assessores, consultores e especialistas, pagos pelo erário público, mas para benefício do próprio, é aceitável.

 

As modalidades de pequena e média corrupção abundam e são bem conhecidas. Uso privado de carros de função, realização de obras domésticas à custa de dinheiros públicos, nomeação de filhos e afilhados, pagamento de refeições caras, luvas de grandes negócios, estágios e cursos superiores em instituições reputadas, percentagens depositadas “lá fora” e avenças estranhas, de tudo um pouco, os portugueses conhecem bem. Infelizmente, parece que também vivem bem com isso. O que é triste e desesperante é verificar que os raros mecanismos de combate à corrupção e ao favoritismo são a inveja e a concorrência. Quando são vários os predadores e só uns os beneficiários, é quase certo que os outros arranjarão maneira de denunciar. Em nome do bem público, alegam.

 

O problema, não sabemos bem se sobretudo nosso ou se partilhamos com outros, é o da dualidade de conceitos. Por um lado, como no futebol, o que os “nossos” fazem está bem, o que é da autoria dos “outros” é condenável. Mais inquietante é a diferença moral entre a esfera privada e a partidária. Para muitos, a verdadeira corrupção é aquela de que se aproveitam os indivíduos, as suas famílias e os seus amigos. O que é para proveito pessoal é condenado e pode ser exposto. O que é para uso do partido não tem o mesmo tratamento: a “ética republicana” e a legitimidade política garantem que é justa a distribuição de despojos e razoável o benefício partidário. Quer isto dizer que, para muitos, as eleições democráticas conferem uma legitimidade a toda a prova, que se sobrepõe a outros critérios morais ou legais. Por outras palavras, quem está no poder, usa-o.

 

É este sentido de legitimidade que explica, em parte, o facto de tantas pessoas inteligentes, sabedoras, por vezes competentes, eventualmente cultas e experientes terem comportamentos condenáveis sem recear a lei ou a opinião. É o pior de tudo: o sentido da impunidade. A certeza de que o voto dá direitos e de que a democracia oferece vantagens pessoais e partidárias. O “quero, posso e mando” do soba ou do ditador não é pior do que o “quero, posso e mando” do democrata eleito…

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Público, 18.11.2023

 

 

 

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