Grande Angular - Um verdadeiro desastre!
Por António Barreto
É o maior desbaratamento da história da democracia portuguesa. O governo tinha tudo o que era preciso. Um Primeiro-ministro hábil e habilidoso. Uma maioria absoluta. Um partido de governo coeso e unido. Um Presidente da República cooperante e colaborador como nunca se tinha visto. As esquerdas destroçadas. O Chega a subir, não de mais, mas o suficiente para diminuir o PSD. Uma oposição tépida e desorientada. Um Programa de financiamento europeu de montante inimaginável. Uma situação económica e financeira melhor do que se esperava ainda há pouco tempo. O erário público com uma folga confortável. A admiração, o respeito, a necessidade e a dependência das academias, da administração, das instituições e da imprensa. A colaboração do capital internacional. A atenção dos empresários. E os autarcas em fila de peditório.
Por isto tudo, não se percebia bem a razão pela qual o governo não conseguia tratar da situação social que não corria muito bem. As lutas e as greves nos hospitais, nas escolas e nos tribunais persistiam e os respectivos ministros não conseguiam tratar nem dialogar. Os serviços públicos em geral davam claros sinais de que se aproximava o colapso, com enormes prejuízos para a população. Os aumentos do custo de vida e a inflação ameaçavam o bem-estar de grande parte das famílias. A crise na habitação atingia alturas de quase calamidade. Alguns ministérios ressentiam-se da mediocridade dos seus ministros, com relevo para a saúde, as infra-estruturas, a educação e a justiça. O governo sabia distribuir, mas não organizar e criar.
Em oito anos de governo, várias perturbações gravíssimas ameaçaram tudo. A pandemia dominou a vida pública durante dois anos. A guerra na Ucrânia destruiu a paz europeia, com efeitos nefastos para todos os países. Agora, a guerra na Palestina e em Israel revelou novas ameaças para o mundo, cujas consequências estão ainda longe de ser medidas.
Não foram, todavia, as dificuldades sociais internas nem as perturbações internacionais que deram cabo do governo e da estabilidade política. Foram questões morais, foi a falta de seriedade, foi o nepotismo partidário, foi a incompetência de vários ministros, foram os escandalosos abusos de poder dos ministros nas questões do aeroporto, da TAP, do lítio e de outros grandes projectos. Foi a auto-suficiência de ministros e de dirigentes partidários que se sentiam capazes de tudo, do melhor e do pior e que julgavam que podiam tratar da felicidade dos outros e da riqueza de alguns. Foi a incapacidade de servir o país e os cidadãos.
A causa da crise não foi social, nem económica, muito menos internacional. Foi o mau governo. O bem e o mal andam de braço dado! O que parecia um bom governo era feito de maus ministros. Em certos casos, gente vaidosa e prepotente. Noutros, medíocres fantasmas.
Esta crise surpreendeu toda a gente. Não só a crise, como também o modo como muitos reagiram. Alguns comportamentos das autoridades deixaram perplexos os cidadãos. O Presidente da República aceita o pedido de demissão, mas não demite, para já. Anuncia a dissolução do Parlamento, mas não dissolve, por agora. Apesar de anunciar a sua intenção de demitir o governo e dissolver o Parlamento, marca eleições! Será que estamos perante a criação de novos dispositivos constitucionais, tal como a declaração de intenções?
O Presidente da República afirma que é necessário aprovar o orçamento de Estado e promulgar várias leis e dispositivos legais necessários à economia. Por isso, afirma que demite e dissolve, mas só o fará daqui a umas semanas! Entretanto, o governo e o Parlamento exploram o mais possível este extraordinário período de terra de ninguém e de tempo de todos. Sem orçamento de Estado aprovado, depois de aceite o pedido de demissão do Primeiro ministro e de marcadas as eleições sem dissolução prévia, o Conselho de Ministros aprova, a correr, o maior aumento da história do salário mínimo! Antes de estar aprovado o orçamento de Estado, já depois de o pedido de demissão do Primeiro ministro ter sido aceite e depois de o Presidente da República ter declarado que dissolveria o Parlamento, o Conselho de Ministros aprova aumentos salariais para a Função Pública.
Esta crise ainda revela fenómenos estranhos. Um Primeiro ministro, cuja pedido de demissão foi aceite, propõe ele próprio o seu sucessor! O Parlamento é ignorado em todo este processo. O partido maioritário é marginalizado. O grupo parlamentar do partido maioritário é ignorado pelo chefe do partido, pelo Primeiro-ministro e pelo Presidente da República. O presidente não se sente obrigado a pedir ao partido maioritário (e não apenas ao Primeiro ministro demitido…) que indique, se for capaz, um novo Primeiro-ministro, como se faz em países com experiência democrática. Todos concordam, estranhamente, com a ideia de que o governo da nação não é do Parlamento, nem do partido maioritário, mas sim do chefe do partido.
Outros factos surpreendentes são visíveis para todos. Circulam nos jornais, nas televisões e nas redes centenas de transcrições de interrogatórios, de declarações, de despachos confidenciais e de escutas telefónicas. A Procuradora geral da República utiliza formas sibilinas e estranhas à clareza do Direito e ao respeito pela dignidade das pessoas, com o que desencadeia uma crise política sem precedentes. Se não tiver razão, deve ser banida e afastada. Se tiver razão, tem de mudar o seu estilo, dado que o actual não é próprio da democracia e da justiça.
Mais ainda do que noutros tempos, vamos ter meses sem governo pleno, sem Parlamento completo, sem orçamento a sério, sem novo programa… O próximo governo vai querer mudar e alterar. Não há costumes nem tradição suficientes para poder viver uns tempos sem governo ou com pouco governo. Tudo depende do Estado e do governo. Vão ser precisos meses para demitir, dissolver, convocar, realizar congressos, estabelecer listas de candidatos, sanear uns, promover outros, fazer campanha, eleger, apurar, formar governo e ir ao Parlamento. Sem orçamento, sem autonomia financeira e sem autoridade de serviço público. Há países onde é possível viver meses e meses sem novo governo e sem novo parlamento em plenas funções. Aqui, não. Os prazos legais são absurdos. Os costumes obsoletos. As regras fantasmagóricas.
É assim que os portugueses vivem.
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Público, 11.11.2023
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