30.9.23

Grande Angular - A Europa em perigo

Por António Barreto

Não é a luta de classes que ameaça a Europa e a paz. Nem o espectro do comunismo, reduzido agora à ínfima espécie. Pode ser que a globalização acelere a decadência europeia. Mas é sobretudo, uma vez mais, como quase sempre na história, a questão nacional que ameaça. As nações, os Estados nacionais e as ambições dominadoras manifestam-se e não se encontram respostas neste formidável arranjo que é o da União. Talvez seja a mais sólida aliança política pacifica da história recente, mas hoje revela-se frágil e insegura. Incapaz de progresso federal, aliás arriscado. Mas também inapta para resolver as perenes questões nacionais. Sem ultrapassar esta velha certeza: a de que a democracia é de pertença ou nacional.

 

Do Brexit à Catalunha, da Irlanda à Escócia, da Padânia à Polónia e da Península Balcânica ao Mar Negro, sucedem-se os sinais alarmantes de conflitos inevitáveis. Ou antes, dificilmente reparáveis. Agora, com a invasão da Ucrânia pela Rússia, com os conflitos na Arménia e no Azerbaijão, com as candidaturas de mais nove países à União, com as dificuldades húngaras e polacas e com as vagas descontroladas de emigrantes africanos e asiáticos, a Europa conhece um período de vulnerabilidade como já não se sentia há muitas décadas.

 

Há uma espécie de regresso do nacionalismo que cria a intranquilidade. Todas as pulsões antidemocráticas e antieuropeias procuram no populismo nacionalista a sua energia. Com uma razão certa: a Europa e a sua União não têm sabido conciliar o espírito federal com a tradição nacional. As votações tão significativas das correntes nacionalistas em França, em Espanha, na Itália e na Alemanha, por exemplo, além da Hungria e da Polónia, são sinais de que o nacionalismo está em ascensão. As manifestações de crise das democracias e do sistema europeu têm sido tonificantes para a direita nacionalista. Nos programas de muitos partidos, é o nacionalismo o motor retórico, não a antidemocracia.

 

Desde os anos cinquenta que, por duas ou três vezes, os europeus conseguiram o que sempre pareceu impossível: conciliar, com paz e democracia, aspirações federais com tradições nacionais. Nem sempre foi fácil, várias vezes a Europa (o Mercado comum, a CEE, a CE, a UE…) esteve à beira do colapso. Mas talvez nunca, como agora, os perigos fossem tão grandes, as ameaças tão letais e os inimigos tão importantes.

 

Os dirigentes europeus têm o hábito de desvalorizar os problemas. É o que eles entendem por acalmar os espíritos. Mas esta maneira olímpica de considerar que graves são os problemas a longo prazo, como as alterações climáticas, para os quais tudo é urgente e nada imediato, pode levar facilmente ao desastre. No Brexit, em Barcelona, em Lampedusa, em Marselha e em Kiev está de facto a jogar-se tudo. É nestes sítios que a Europa morre devagar. É nestes locais que renasce o nacionalismo na sua vil espécie. Pior mesmo só o nacionalismo imperialista de Moscovo, que também é uma ameaça contra a Europa.

 

Com as más recordações da história e com a justificada repulsa do nacionalismo, os dirigentes europeus não conseguem encontrar o seu caminho. A resposta não é “mais burocracia europeia”, “mais fundos de coesão”, “mais indemnizações e subsídios” … Já se percebeu que esses argumentos, válidos durante décadas, não valem o que valiam. Parece evidente que só respostas que preservem o espírito nacional e as tradições culturais, em combinação com a ideia europeia, terão o condão de interessar aos eleitorados descrentes.

 

Faz parte da ortodoxia considerar que o patriotismo é bom e o nacionalismo mau. O primeiro significaria amor à pátria e à comunidade, assim como solidariedade para com os seus iguais. Enquanto o nacionalismo, tendo o mesmo ponto de partida, a nação, significaria o sentimento de superioridade de uma comunidade de cultura e etnia, com exclusão de outras. A nação, como tal e com esta designação, é recente, tem poucos séculos, serviu de base para a afirmação dos Estados modernos. Já a pátria, como sentimento de pertença, tem muitos séculos, talvez milénios. É muito fácil afirmar-se patriota e detestar o nacionalismo. Mas a verdade é que têm ambos a mesma fonte, a mesma etimologia e raízes afins.

 

A esquerda tem tendência a dizer-se patriota, mesmo quando é nacionalista. A direita prefere considerar-se nacionalista, mesmo quando não é patriota. Os russos em geral, e os comunistas em particular, sempre se disseram patriotas, até porque o seu Estado tem muitas nações submetidas. Mas o nacionalismo russo é uma das grandes ameaças contra a paz na Europa. Os nazis, pouco interessados em compor com outras nações, consideravam-se nacionalistas, sem remorsos e com orgulho. Cultivavam o espírito conquistador, como os russos sempre fizeram. Os revolucionários franceses foram nacionalistas e patriotas sem escrúpulos nem hesitação. Portugueses, espanhóis ou italianos oscilaram, ao longos dos tempos, entre o nacionalismo e a patriotismo. Já os ingleses foram sempre as duas coisas, além de imperialistas.

 

Como é evidente, não há um patriotismo europeu. Muito menos nacionalismo. Pode haver, é certo que há, um orgulho europeu, que a União tem sabido cultivar, com cautela e sabedoria. Mas sem grandes resultados. Na verdade, o patriotismo de cada nação europeia é mais forte. Em tempos de crise, como actualmente, a situação é ainda mais dedicada: na verdade, os argumentos políticos contrários à ordem estabelecida socorrem-se do nacionalismo para se oporem. Aí se fundam várias espécies de populismo.

 

A Europa da democracia e da liberdade e a Europa da grande cultura e dos direitos humanos só se defendem se conseguirem combinar os seus impulsos federalistas com os seus sentimentos nacionais. Só o alcançarão se souberem defender a nação, sem nacionalismo. E se souberem proteger a sua cultura sem xenofobia. E se perceberem que ter pátria é melhor do que ser apátrida.

Que existe de comum entre a guerra da Ucrânia, a crise económica internacional e o desastre migratório do Mediterrâneo? Aparentemente, nada. Na verdade, muito. A Europa está a perder, vive cada vez mais dependente, nas últimas décadas, da força americana, da indústria chinesa, da energia russa, da mão de obra asiática e africana, dos produtos alimentares e das matérias primas de todo o mundo. Parece que a Europa encontra satisfação na sua vocação de parque temático e de atracção turística. A sua força é o seu passado. Não o seu futuro.

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Público, 30.9.2023

 

 

 

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2 Comments:

Blogger F. Correia said...

Este texto deveria ser lido e discutido em todas as escolas secundárias - por toda a Europa. É necessário que os políticos do futuro tenham uma craveira muito superior à dos políticos "low cost" dos nossos dias.

30 de setembro de 2023 às 14:07  
Blogger bea said...

Parece-me que este texto deveria ser lido por todos os portugueses - faz distinções teórico-práticas de forma simples e necessária. Penso que nas escolas se forma o futuro, mas é no presente imediato que se jogam os dados e há muita confusão na cabeça dos portugueses que votam; demasiadas coisas que julgamos saber e não sabemos. No fundo, julgo que nunca fomos preparados para a democracia. Mau grado os excessos nos currículos escolares.

6 de outubro de 2023 às 06:32  

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