Grande Angular - Estrangeiros nas Forças Armadas
Por António Barreto
É uma discussão envenenada! A cada frase, espreitam os riscos ou as acusações de nacionalismo, totalitarismo ou cosmopolitismo capitalista. Pode ou não, deve ou não haver estrangeiros nas Forças Armadas? E que género de estrangeiros? Todos, imigrantes naturalizados, descendentes de segunda geração? De língua materna portuguesa? Residentes em Portugal há quanto tempo? Podem os candidatos ter dupla nacionalidade? Deverão ser obrigatoriamente originários dos países de língua portuguesa? Contratados a prazo ou integrados em carreiras? Recebem vencimentos iguais aos outros soldados e oficiais ou têm tratamento especial? Podem ser promovidos na carreira até ao topo ou têm limites? Podem ser enviados para qualquer país onde se realizem missões de que Portugal faça parte? Podem cumprir, integral ou parcialmente, o serviço ou o contrato em dois países diferentes, ao serviço de dois Estados? Incluindo em países donde são originários? Necessitam conhecer a história de Portugal, falar português, saber algo de geografia de Portugal e estar familiarizado com as leis portuguesas? Pode ou deve exigir-se a estrangeiros mais conhecimentos e mais formação do que a portugueses de origem?
Na ausência de candidatos nacionais, como parece ser a situação actual, que fazer? A primeira solução é evidente. Melhores vencimentos. Melhores condições de trabalho e de desenvolvimento profissional. Mais oportunidades para fazer carreira e mais capacidades de reciclagem na vida civil. Melhores condições de saúde, melhor seguro de vida e de doença, mais facilidades para os membros da família. Mais reconhecimento da dignidade profissional. Tudo o que actualmente faz falta nas Forças Armadas portuguesas.
E se não houver candidatos? Nem bem pagos. Nem com oportunidades de formação profissional e de emprego subsequente? Nem com seguros de saúde, pensões e reformas de especial valor? E se os portugueses, homens e mulheres, não quiserem pura e simplesmente fazer a tropa, nem cumprir serviço militar? Se assim for, deixa de haver Forças Armadas e exército nacional.
É estranho que se possa tratar deste problema como se fosse simplesmente profissional. Não há candidatos portugueses que cheguem? Então recorre-se a estrangeiros. Como para as estufas de Odemira, as vindimas do Douro e os sapatos de Felgueiras. É preocupante pensar que exista quem aceite que o serviço militar, de conscrição ou de contrato, seja uma oportunidade profissional como outra qualquer. Da disponibilidade da vida aos riscos evidentes, tudo o que é militar é diferente. Incluindo a ordem e a disciplina. Assim como o espírito e o sentimento patriótico. O que não quer dizer que o serviço, obrigatório ou não, exija passividade, perda absoluta de direitos e abdicação das crenças de cada um. Um cidadão pode sempre reservar uma área pessoal de objecção e até de negação, se necessário for, por motivos de religião, doutrina ou moral. Os Estados modernos e as Constituições democráticas prevêem, felizmente, eventualidades excepcionais para esta área de actividade muito singular.
Mas, no essencial, a prestação de serviço militar, como conscrito, voluntário ou contratado, tem exigências e consequências muito especiais. O risco de vida, a total e permanente disponibilidade, o sentido do dever, o sentimento de pertença, a dedicação integral, o reconhecimento de uma autoridade estabelecida, um vasto código de obediência, o sacrifício de muitos aspectos da vida privada, a aceitação de obrigações excepcionais e do condicionamento de certos direitos fundamentais, todas estas características revelam uma condição singular e de elevado grau de exigência. Como ainda se podem referir as restrições aos direitos de expressão, associação e reunião. Felizmente, na época moderna e em democracia, existem mecanismos jurídicos e políticos suficientes para impedir que esta exigências se transformem em autocracia e totalitarismo. Mesmo assim, o universo militar é especial e por isso mesmo merece especial tratamento. Não choca que, a exigências excepcionais, correspondam compensações excepcionais, dos vencimentos ao desenvolvimento pessoal, dos seguros e da assistência à protecção dos familiares. O elevado grau de exigência e a renúncia a certos direitos justificam a retribuição.
As economias de mercado e a globalização, assim como as redes sociais, têm tido efeitos devastadores nas nações e nas comunidades de identidade. Nem sempre é bom, nem sempre é mau. Ao abrir fronteiras, quebram-se conflitos e preconceitos. Mas, ao perderem-se referências nacionais, perdem-se muitas características culturais. Ao destruir identidades, desfazem-se meios de defesa e protecção, até por vezes de dignidade pessoal. As ditaduras detestam instituições. Uma coisa é certa: a destruição de comunidades culturais, por vezes nacionais, acompanha quase sempre o rolo compressor do totalitarismo político e da tirania económica. A renúncia a valores culturais, incluindo factores de identidade nacional, em nome da modernidade, do igualitarismo e do cosmopolitismo, é equivalente a uma submissão aceite e desejada. Um país que renuncia à sua língua materna e que aceita que a educação se processe numa língua estrangeira, inglês seja ele, é um país que está a caminho da abdicação da identidade própria. Uma população que aceita a igualdade absoluta, que admite que uma língua estrangeira seja oficial nas escolas e que abre a estrangeiros as portas de acesso a funções de defesa nacional, é uma população a caminho da sua própria desistência. Pode ficar mais rica, talvez. Pode ficar mais moderna, quem sabe. Pode viver mais confortavelmente, possível. Mas não fica mais livre, mais culta e com mais dignidade.
As Forças Armadas deveriam ficar reservadas aos portugueses. Aquelas servem essencialmente para proteger uma população, o seu Estado, a liberdade dos seus cidadãos, a democracia e a independência. Numa só expressão, para defender a comunidade nacional. Não se vê como é possível que estrangeiros, mercenários ou profissionais de qualquer nacionalidade, possam cumprir esses deveres. Não se trata tanto de patriotismo, nem de nacionalismo. Muito menos de xenofobia. Trata-se simplesmente de liberdade individual e dignidade humana.
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Público, 23.9.2023
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