Grande Angular - Prova dos nove
Por António Barreto
A mudança de governo e a transição entre governos de partidos diferentes são momentos excepcionais na vida da democracia. No mundo inteiro e também em Portugal. São testes ao funcionamento da democracia. Verifica-se o grau de consolidação do regime, assim como a solidez das instituições. Analisa-se facilmente a força das organizações partidárias e das clientelas políticas. Percebe-se a importância que se atribui à imagem, a expensas do conteúdo. Compreende-se o valor dos rituais, essenciais para a democracia. Tem-se a possibilidade de observar o grau de cortesia e as boas maneiras democráticas seja no Parlamento seja no governo. Quando a sucessão, a alternância e a transição correm mal é sinal de que faltam hábitos e experiência que só o tempo e a cultura acabarão por trazer.
No caso actual, a transição está a fazer-se mal. Já houve debates inúteis e de má-fé, como sejam os das contas de despesas, que não esclareceram ninguém. Pelo contrário, aumentaram a confusão. Mas tiveram, infelizmente, uma utilidade: os eleitores ficaram a perceber que aqueles debates não têm outra utilidade a não ser a de passar rasteiras e denunciar os torpes enganos dos adversários. O que poderia ter sido uma importante discussão sobre os fundamentos do orçamento transformou-se numa cena cruzada de engenharia financeira e de maquilhagem de contas, a fim de “passar na televisão” e de impressionar os eleitores. Que já não se deixam impressionar porque, simplesmente, não percebem. Nesse sentido, o melhor orçamento é o que incomoda o adversário, não o que faz melhores contas.
A transição também está a correr mal noutros sectores, não apenas nos debates parlamentares. Como, por exemplo, na Saúde, na Cultura, na Segurança Social e Trabalho, na Defesa Nacional e na Segurança pública… Para já não falar da Santa Casa da Misericórdia, que não é uma pasta de governo, mas certamente importante. Nestes casos, um problema central é ou foi o das demissões de responsáveis e das respectivas substituições. Os mandatos não acabam, as substituições são feitas intempestivamente, não se percebe muito bem o que assiste à decisão de demissão e nomeação. Muito facilmente se levantam dúvidas e suspeitas sobre a competência e a honestidade de quem sai, assim se destruindo reputações e carreiras. Muito rapidamente também se acusa o novo governo de corrupção, nepotismo e arrogância. Na transição em curso ainda não se atingiram limites conhecidos noutras ocasiões, pois tudo é ainda muito recente. Mas já assistimos a momentos confrangedores.
A questão das nomeações de altos cargos da Administração Pública nunca esteve bem resolvida. Quem entra, facilmente demite, condena e arrasa, a fim de nomear quem quer. Chama-se a isso, na gíria nacional, confiança política. Quem sai, queixa-se de injustiça, nepotismo partidário e ilegalidade. Chama-se saneamento.
Quem entra tem bons argumentos. Não é possível fazer as “nossas” políticas com os funcionários de outros. Os altos funcionários têm de partilhar os planos de quem governa. Não é possível bem governar com ideias de um partido e dirigentes do outro. Se um governo perde eleições é porque o seu pessoal e os seus programas foram derrotados e trata-se agora de ter tudo novo. Há razão nisto tudo. Um governo novo tem de poder nomear directores capazes de pôr em prática os novos projectos.
Só que… As instituições são duráveis, não se limitam a fazer o que um partido manda. Há ideias e programas em curso durante anos e décadas, sem atenção ao que cada partido diz. A execução de políticas é, muitas vezes, a concretização de opções, sendo que estas podem mudar, mas a execução concreta, as regras, as responsabilidades e a prestação de contas dependem das instituições que consagram mais continuidade do que alternância partidária. As mudanças totais, ao sabor dos resultados eleitorais, são causa de desastres, de perdas de direitos e de prejuízos incalculáveis. Há projectos e programas que duram anos a consolidar, não podem ser apagados só porque um partido assim o entende.
A verdade é simples, mas difícil. Há situações em que se justifica a “confiança política”, isto é, as nomeações dependerem de critérios políticos. Como há situações em que não se justifica o recurso à “confiança política” que não é mais do que uma alcunha para a clientela política. Há cargos para os quais se exige partilha de ideias com o governante, mas também os há que exigem independência pessoal e competência técnica. Quer isto dizer que a solução perfeita reside algures na convergência de vários critérios. Conformidade com as orientações. Confiança política. Concurso público e isenção. Competência e seriedade. Convenhamos que não é fácil.
As melhores soluções não se encontram apenas em dispositivos aleatórios. São também regras conhecidas pela população. São hábitos de escrutínio público. Por exemplo, a formação de um novo governo não deveria exigir um voto parlamentar de aprovação ou de confiança? Quem fica satisfeito com a ideia de ver um governo “passar” sem voto positivo? O próprio programa de cada ministro não deveria ser escrutinado, pelo menos uma vez?
Não seria vantajoso para a democracia que numas dúzias de cargos superiores os indigitados tivessem de ser ouvidos em comissões parlamentares? Funções institucionais de especial relevo, na magistratura, na defesa nacional, na segurança pública, nas contribuições e impostos, nas provedorias, na diplomacia e nas informações, entre outras, não deveriam estar assim condicionadas a processos de audição pública parlamentar? As nomeações para grandes empresas e instituições autónomas não deveriam depender de audição pública prévia? Não seria conveniente abandonar a hipocrisia actual e estabelecer uma lista permanente de umas dúzias de cargos e funções que ficariam à mercê do poder discricionários dos ministros, com total dispensa de concursos públicos, mas condicionados a audiência pública?
Não estamos a falar de governo de assembleia, nem nada parecido. Defende-se, isso sim, uma ideia de governo responsável perante o parlamento e de um parlamento com real competência política. Com o actual rumo dos hábitos parlamentares, o que está em curso é a transformação do Parlamento num a câmara de minas e armadilhas, de quezília e chicana. O parlamento, pelo caminho que leva, é uma espécie de auditório onde se preparam espectáculos públicos para a televisão. A função parlamentar é cada vez mais um exercício de “vida real” para entreter.
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Público, 18.5.2024
1 Comments:
«governo novo tem de poder nomear directores capazes»
Essa democrática medida, dizem-me, tomada ao tempo de Soares na governança.
Na Defesa, como na sugestão de um amigo, para audições dos designados chefes das FA no Parlamento, ao gabinete de Portas.
Nada que não possa funcionar aqui ao lado, na ingovernável Itália por exemplo.
Assim se chegou a 50 anos de etapas como um Aeroporto longe de mais, e a uma ANA raptada pela Europa.
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