7.9.24

Grande Angular - Uma questão de confiança

Por António Barreto

É certamente um dos maiores mistérios da vida política: a confiança! Não se trata de subserviência, nem de seguidismo. Muito menos dependência ou receio. Nem instinto ou consciência de classe. A confiança implica o contrário: é uma decisão racional, com base na informação. É também um sentimento difuso, mas sólido, com fundamento no reconhecimento de normas e tradições na vida pública. É uma compreensão aguda dos mecanismos de comportamento social, ora imperfeitos, ora límpidos, mas aceites. É uma sensação de respeito pelas regras de vida em comum, com origem na certeza que temos de que os nossos concidadãos têm uma atitude de apreço pelas normas que nos regem. É o reconhecimento no valor das instituições, estejam elas comandadas pelos amigos ou por adversários políticos. É a certeza de que as organizações públicas, lideradas por sócios ou por concorrentes, são orientadas por princípios de democracia ou de legitimação aceite. É a convicção de que, mesmo com os defeitos conhecidos da acção política, mesmo com erros na governação, as organizações da sociedade têm funções que tentam cumprir todos os dias. E ainda a certeza de que as pessoas que desempenham essas funções não são todas egoístas, trapaceiras e corruptas. Ou finalmente a sensação de que nas sociedades existem, fora da política, princípios de justiça, ideias de castigo e recompensa, sentimentos de compaixão e reflexos de solidariedade.

 

Estas são algumas das bases da confiança. Muitas vezes, quando a política falha, porque é uma actividade imperfeita, é na confiança que depositamos esperança para viver em paz. É triste afirmar, mas hoje, em Portugal, a confiança está a ser derrotada pela acção política. O que é perigoso para a sociedade. E para a democracia.

 

Por exemplo, ninguém confia em quem tem feito grandes negócios de Estado. Ninguém confia em quem se ocupou da TAP nos últimos anos. Ninguém acredita nos que geriram, nacionalizaram, privatizaram e se preparam para reprivatizar. Todo este assunto é recheado de labirintos, curvas e contracurvas. Não creio que haja uma dúzia de pessoas que julguem que o essencial foi feito com honestidade, sem clientes, sem correligionários, sem grandes interesses e sem salteadores profissionais. Ninguém acredita que não tenha havido cupidez e ganância em doses descomunais. Tal como ninguém confia em quem estudou, planeou e decidiu sobre os projectos do aeroporto de Lisboa, das suas sucessivas localizações, da sua vocação e da sua construção. Não parece possível confiar no rigor dos principais partidos após a “saga” do aeroporto de Lisboa. As mesmas pessoas, os mesmos governantes, pessoas diferentes dos mesmos partidos, com a ajuda das mesmas empresas de e engenharia, com o apoio das mesmas empresas de advogados, tomaram, ao longo do tempo, decisões sucessivas radicalmente diferentes. Há políticos, engenheiros e empresas que subscreveram projectos contraditórios e alternativos! As histórias da TAP e do aeroporto de Lisboa são verdadeiros epitáfios para a honestidade pública em Portugal.

 

É prejudicial à saúde mental acreditar nos ministros dos dois principais partidos, nos respectivos secretários de Estado, nos seus directores e presidentes, assim como nos gestores, que ao longo dos anos presidiram à metódica destruição da rede de caminho-de-ferro e do seu equipamento e organizaram o fecho de linhas, sempre sob o desígnio público de modernizar, reorganizar e desenvolver o transporte ferroviário no nosso país. A história do caminho-de-ferro em Portugal é um episódio de crime de lesa pátria.

 

Quem pode confiar em quem gere o SNS e tem a tutela do SNS durante os últimos anos? Quem não planeou a procura, não previu as reformas, não contou com o envelhecimento, não se preparou para renovar o pessoal médico e de enfermagem, não percebeu que qualquer país europeu paga muito melhor os médicos e os enfermeiros, quem assim agiu e se demitiu dos seus deveres, não será nunca capaz de refundar o SNS, de garantir uma saúde pública decente e de eliminar os conflitos viciosos entre saúde pública e saúde privada. Quem assim se comportou não merece qualquer confiança dos portugueses para gerir e renovar o SNS. Não é possível confiar num Serviço de Saúde que, aos fins de semana, nas televisões, anuncia, como se fosse um boletim meteorológico, as urgências e as maternidades encerradas!

 

Como é possível confiar no julgamento e na avaliação que os partidos, sobretudo os da oposição, ontem e hoje, fazem dos projectos de orçamento? Ainda não há orçamento, nem texto, nem contas, mas os partidos já sabem de ciência certa como votam, sim ou não. Ainda não houve negociação séria e fundamentada, ainda não foram feitas as principais opções do governo, e já os outros partidos, grandes e pequenos, sabem exactamente o que fazer e como votar, ficando apenas na penumbra a táctica, isto é, a maneira de tornar pública a sua opção a fim de parecer que é séria.

 

Quem pode confiar num sistema de justiça, que inclui o legislador, os magistrados judiciais e os do ministério público, os advogados e os oficiais, sem falar nos ministros e nos secretários de Estado que deixam prescrever, que deixam correr recursos, que deixam desfiar as fugas de informação, que permitem e incentivam as escutas telefónicas legais e ilegais? Como confiar nas instituições, nos partidos, nos ministros, nos juízes de instrução e nos procuradores que têm deixado correr os processos, os prazos, os recursos e os indícios dos crimes económicos e financeiros dos grandes negócios, da grande banca e dos grandes políticos e governantes?

 

Há muitos anos que não se consegue criar um ambiente político e uma situação pública capazes de criar confiança nas instituições. Confiança moral, técnica, científica e política. Em boa democracia, é possível ter opiniões firmes, defender um partido e opor-se a outro, desencadear lutas partidárias e ideológicas, participar nas lutas pluripartidárias ao mesmo tempo que se confia nas instituições, na sociedade e nas famílias. É possível a luta de partido contra partido, sem lutar contra instituições. É possível defender firmemente opiniões políticas que dividem, mas acreditar em acções institucionais que unem. É muito raro em Portugal acontecer o que precede. Daí os saneamentos políticos, as enxurradas de nomeações e as substituições intempestivas de funcionários e dirigentes. 

 

            Nenhuma democracia resiste sem um módico de confiança por parte dos cidadãos.

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Público, 7.9.2024

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