12.10.24

Grande Angular - Fascismo e Antifascismo

Por António Barreto

O debate orçamental foi muito rico. Tem sido, até agora. Não pelo conteúdo económico ou social, mas por alguns aspectos políticos. Não no sentido nobre do termo, mas na sua acepção de coreografia e comportamento. Nada revelou sobre o pensamento político dos principais partidos, mas muito exibiu das suas paixões menores, das suas armadilhas e provocações. Conhecemos hoje melhor, muito melhor, o PSD de Montenegro, o PS de Santos e o Chega de Ventura. Tal como disseram os seus protagonistas, bastou uma frase para iluminar todo o processo: “dado que não foi possível chegar a acordo, vamos ler o orçamento”!

 

A margem financeira de diferença entre o que seriam os orçamentos dos três grandes partidos poderá ficar muito perto do 1%! As diferenças entre concepções estavam diluídas na querela estritamente política. O importante era derrubar ou não o governo; aliar-se com a extrema-direita ou não; coligar-se com a extrema-esquerda ou não; convocar novas eleições ou não. O PSD pretende ficar sozinho ao centro, empurrando o Chega para o fascismo e o PS para o antifascismo. O PS quer atirar o PSD para o fascismo e ficar a liderar a esquerda antifascista. Mau grado o seu insignificante eleitorado, as esquerdas do Bloco e do PC querem que o PS abandone a direita e se junte a elas. O Chega quer tudo: estar fora e dentro, ser democrático e não democrático, aproveitar tudo o que é irracional e populista e designar-se a si próprio como reserva do nacionalismo.

 

Em menos de um ano, o Governo impressionou pelo activismo e pelo lançamento de projectos que se atrasavam. Mas sobretudo ilustrou-se pela multiplicação dos pães e dos peixes. Aumentou tudo o que estava à mão, prepara-se para aumentar ainda mais todas as profissões. Distribuiu benefícios e subsídios como ninguém. Deu incentivos. Fez descontos. Isentou de taxas e impostos. Deu mais um poderoso contributo para uma figura em crescimento que é a do “orçamento de geometria variável”. Há orçamentos e regimes fiscais conforme o sexo e o género, a idade, os estudos, os locais de residência, a origem e a actividade. Já se ultrapassou a fronteira do aceitável, isto é, da fiscalidade conforme ao rendimento. Estamos a entrar num novo mundo que é o da diferença de direitos e deveres de acordo com os estatutos sociais e a condição humana. Não só é a base de uma profunda desigualdade, como é a chave para o mais clientelar dos Estados. Isto é, os benefícios e os direitos dos cidadãos dependem das preferências dos governantes e do grau de reverência dos cidadãos. “Quem se porta bem, tem direitos, quem se porta mal tem deveres”, será a divisa do futuro.

 

Há, todavia, questões que ficam em aberto e ultrapassam largamente o pormenor orçamental. É, como alguns pretendem, a divisão da sociedade e da política. A dicotomia. A alternativa. O frente-a-frente. A classe contra classe. É o fascismo e o antifascismo. Há muita gente nos partidos que pretende esse género de vida. Repete-se a lengalenga de que o “centrão” é o ninho da corrupção, o caldeirão de interesses e o lugar-geométrico de todas as indecisões. Muitos desses defeitos serão reais. Mas é necessário garantir que as outras vias são menos isso tudo, o que está longe de ser seguro. Por outro lado, a catilinária contra o centro, ou contra as políticas de centro, esconde o que realmente se pretende: a política radical de oposição pela exclusão. 

 

O fascismo é detestável. O antifascismo também. O paralelo com o racismo e o anti-racismo é aceitável: ambos são igualmente detestáveis. Já agora, comunismo e anticomunismo estão na mesma categoria. Sabemos as razões pelas quais fascismo, racismo e comunismo são condenáveis. A pergunta é: então o anti é bom? O problema é mesmo esse. É que não é. Quem faz profissão de fé anti qualquer coisa está a fazer a economia da inteligência. Quem trata os seus opositores de anti isto ou aquilo está a poupar no rigor. Durante décadas, os comunistas trataram os seus adversários de anticomunistas: os perseguidos têm sempre razão, era essa a ideia. Durante décadas, os salazaristas trataram os opositores de comunistas: era um atalho do pensamento, o caminho mais curto para a ditadura. Há décadas também que os que a si próprios se designam por anti-racistas tratam todos os outros de racistas. Vivemos actualmente momento revelador: o anti-racismo militante, razão última de activismo, é sectário e assume-se como virtuoso. É como tal reconhecido. Para mal dos nossos pecados.

 

Estes insultos e outros (como antipatriótico, antinacionalista, antidemocrático, além de fascista, comunista e racista) têm como funções alinhar inimigos, dispensar o pensamento, regimentar distraídos e polarizar em duelos diferenças que têm outras naturezas. Quem se orgulha de incluir no seu currículo termos como antifascista, anti-racista ou anticomunista, está a designar-se da maneira mais deficiente e simplória que se pode imaginar.

 

Entre nós, a luta entre fascista e antifascista tem, por razões obvias, especial ressonância. Foi uma espécie de gazua para a acção política. A tal ponto que ainda hoje faz efeitos. E atrai políticos, apesar dos nos faltarem boas definições do fascismo. Da sua espécie fundadora, a italiana de Mussolini, não será difícil encontrar uma designação certeira. O pior é a sua generalização. Em poucos anos, fascista passou a ser tudo o que é nacionalista, católico, capitalista, conservador e autoritário. Melhor: tudo o que não era comunista ou socialista.

 

O regime de Salazar não foi fascista. Os melhores pensadores quase todos concordam com isso. As características próprias do Estado Novo faziam dele um regime autoritário, reaccionário, conservador, nacionalista e imperialista. Mas fascista, não. Aliás, não será atrevido afirmar que, fascista, só mesmo o italiano.

 

O antifascismo é um mistério ainda maior. A levar a sério certas esquerdas, antifascista é o que é socialista, comunista, contra a ditadura, contra o capitalismo, contra a iniciativa privada, contra a democracia parlamentar e contra a burguesia. As esquerdas não se deixam impressionar com o facto de, entre os principais regimes de esquerda antifascista, desde há cem anos, se contarem ditaduras, regimes totalitários, nacionalistas e conservadores. Mesmo mais: em cem anos de história das esquerdas no poder, há muito mais ditaduras do que democracias. Em cem anos de poder comunista, há só ditaduras, nem uma hora de democracia.

 

Tentar, hoje, refazer um bloco fascista e um grande movimento antifascista, é mais do que um regresso ao passado. É um pesadelo.

.

 

Público, 12.10.2024

Etiquetas: