20.4.24

Grande Angular - Vítimas da injustiça. E da Justiça!

Por António Barreto

Depois de fundada a democracia, há quase cinquenta anos, muito melhorou e quase tudo mudou. Mas a Justiça talvez não. Ou antes, a Justiça não soube, não quis ou não foi capaz de se adaptar aos novos tempos, aos novos direitos e aos novos deveres. Ou os governantes e o legislador não souberam tratar da Justiça. Seria bom que, neste tempo de balanços, não se esqueça a Justiça. Ainda por cima, com tantas anomalias diante de nós!

 

Há pouco tempo, a dissolução do Parlamento, a convocação de eleições e a demissão do Primeiro ministro foram actos políticos da responsabilidade do Presidente da República, que deles tem de prestar contas. Politicamente. Foram gestos contestados por muita gente e apoiados por outros. Mas tudo começou com um gesto, que muitos consideram errado e excêntrico, da Procuradora Geral da República. É judicialmente que ela tem de esclarecer e de prestar contas, algo que não tem feito. Mas deveria fazer. Não basta anunciar a sua não renovação de mandato.

 

Todos conhecemos também as decisões contraditórias, adversárias e conflituosas de vários magistrados sobre os casos mais gritantes da actualidade, nomeadamente BES e Marquês. De todas as suas decisões, os magistrados deveriam esclarecer, argumentar e prestar contas. Mas não o fazem. Julgam ser seu direito não o fazer. Consideram que as sentenças e os acórdãos bastam. O que não é verdade.

 

Há casos escandalosos de demora, de morosidade deliberada, de lutas burocráticas e de gestos despóticos prejudicando ora arguidos, ora vítimas, ora autores.  Todos os processos famosos, que vivem connosco há anos, fazem parte do quotidiano. Já ninguém espera que se resolvam. Todos pensam que vão prescrever. De comum a estes casos mais falados, o facto de envolverem pessoas poderosas. É provável que tenhamos, na Europa, um recorde de governantes, directores, administradores, banqueiros, deputados, autarcas, magistrados e polícias às voltas com os tribunais e a trato da justiça. Por que razão é tão difícil avançar, resolver e progredir?

 

Talvez um dia os historiadores saibam responder a esta pergunta tão simples: o que correu mal com a Justiça portuguesa? Na verdade, nada, actualmente, parece satisfatório. Sabemos que a justiça se adaptou mal às grandes mudanças das últimas décadas. À democracia, à economia de mercado, à integração europeia e ao novo regime constitucional de direitos dos cidadãos: a todas estas “novidades”, magistrados e instituições tiveram dificuldade em se adaptar. Porquê? Como foi possível?

 

Os profissionais da justiça, ajudados pelos políticos, souberam reforçar os seus poderes, aumentar a sua independência e consolidar os seus privilégios. Organizaram a sua autogestão. E não fizeram esforços para melhorar a sua eficácia, para serem mais justos, para prestar contas, para assumir novas responsabilidades e para melhor cumprir os seus deveres. Voltando à interrogação inicial: porquê? Como foi possível? Resistiram à mudança social e política? Tinham assim tanto poder? São conservadores? Foram os políticos que lhes concederam estatutos e privilégios? Os políticos têm medo dos magistrados?

 

São muitos os casos actuais, do BES ao Marquês, do BNP à PT, que ilustram as dificuldades da Justiça portuguesa. Mas de que se trata verdadeiramente? Da legislação? Dos magistrados? Das regras processuais? Na verdade, um dos pontos mais sensíveis é de recente identificação. A justiça portuguesa faz cada vez mais o caminho da luta de classes e de corpos profissionais, dos diferendos ideológicos e dos conflitos de interesses. Dos seus próprios e dos que partilham na sociedade. Só esta nova luta de classes, muito negativa para a sociedade, explica disfunções e atrasos, conflitos e ineficiências, todos os dias referidos na imprensa. Com uma nota negativa: os magistrados sentem-se no direito de não explicar razões nem argumentar decisões.

 

As generalizações são inimigas da razão e da verdade. Todos os juízes não são iguais. Como o não são todos os procuradores, todos os políticos, todos os tribunais e todos os polícias. São só alguns. O suficiente para deixar o sector em crise, a opinião pública desconfiada e os cidadãos incrédulos.

 

Pode parecer cândido. Mas a verdade é que quase todos sonhamos com a hipótese de independência de uma instituição. Excepto alguns “realistas” ou cínicos, muitos pensam que seria ideal haver instituições que não fossem necessariamente a tradução de interesses, de classes ou de negócios. Sabemos há muito que tudo tem envolvimento social. Não há sector de interesse ou actividade que não tenha conotações sociais. Direito, economia, literatura, filosofia, religião, arte… Regras e pensamentos seguem interesses ou tradições, pontos de vista e visões do mundo.

 

Mas o direito é um caso especial. Na verdade, é o grande instrumento de regulação das sociedades e dos comportamentos. E garante da liberdade. Sabemos como o direito já defendeu os traficantes de escravos ou os proprietários de lenha. Ninguém ignora que a legislação sobre a greve, o direito de voto ou o poder paternal traduz interesses, regras e privilégios. Nada disto é ignorado. Mas também é sabido que o progresso da humanidade se faz pela distância crescente relativamente aos interesses e às visões do mundo parcelares.

 

Ora, a Justiça atravessada pelas lutas políticas e de classes, ou incubadora das suas próprias lutas internas, é a pior notícia que a democracia pode dar ou receber. Nas sociedades democráticas, o progresso faz-se através de formas cada vez mais apuradas e universais. O direito e a justiça não se limitam a defender a ordem estabelecida e as escalas de poderes de facto, antes procuram afastar-se sempre dos interesses parcelares. O direito universal e o respectivo sistema de justiça procuram servir os interesses superiores de um país e de uma sociedade, o bem comum, assim como os direitos de todos os cidadãos, não apenas de uns grupos contra os outros.

 

Há uma procura muito complexa: a de encontrar um justo equilíbrio entre autonomia e independência, por um lado, e democraticidade e representatividade, por outro. Os magistrados sabem que a sua última responsabilidade é perante o soberano, o cidadão. Todos eles defendem, e muito bem, a sua independência, mas todos devem também admitir a responsabilidade. E prestar contas.

 

Não cuidemos apenas das desigualdades sociais e económicas. Nem só das vítimas das injustiças. Pensemos também nas vítimas da Justiça!

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Público, 20.4.2024

 

 

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