26.4.25

Grande Angular - O 25 de Abril cumpriu-se

Por António Barreto

A pergunta é muito frequente: “O 25 de Abril cumpriu-se?”. A resposta é clara: sim! A frase é muito repetida: “O 25 de Abril não se cumpriu!”. O comentário é simples: Sim, cumpriu-se! Outra frase é parecida: “Falta cumprir o 25 de Abril!”. Não, não é verdade, não falta cumprir o 25 de Abril. Uma frase é também curiosa: “É preciso outro 25 de Abril!”. Não, não é preciso. Nem é possível. Está feito. Sem esquecer a frase mais dramática, diante de qualquer desastre, atraso, incompetência, injustiça ou pobreza: “Foi para isto que se fez o 25 de Abril?”. Não, não foi para “isso” que se fez o 25 de Abril, foi para permitir a liberdade dos portugueses.  E lembrando também a sua versão mais vaidosa, reservada a certas pessoas: “Não foi para isto que fizemos o 25 de Abril!”. Sim, foi para isso que fizeram o 25 de Abril, isto é, foi para o mal e o bem, a glória e a miséria, o erro e a bondade.

 

O 25 de Abril cumpriu-se porque, nessa data e graças ao que imediatamente se seguiu, os presos políticos foram libertados, as polícias políticas foram extintas, criaram-se partidos políticos, os sindicatos ficaram independentes do Estado, viveram-se as liberdades mesmo antes das respectivas leis, a Censura foi extinta, as guerras nas colónias cessaram, os deportados e refugiados no estrangeiro regressaram, passaram a editar-se jornais e livros sem censura, rádio e televisão fizeram-se sem exame prévio, convocaram-se eleições, elegeu-se uma Assembleia Constituinte e, pouco depois, elegeu-se o Presidente da República e o Parlamento livre. Cumprido este “caderno de encargos”, que não é pequeno nem fácil, o 25 de Abril terminou. Começou então o processo histórico político e social, com cidadãos a escolher e decidir, com eleitores a designar partidos e a dar-lhes poder para os representar.

 

Os militares fizeram o 25 de Abril, derrubaram um governo e um regime, terminaram com a guerra, exageraram na revolução política e social, correram riscos, dividiram-se, quase chegaram à guerra civil, uns deixaram-se tentar pela revolução social, outros reagiram, salvaram a democracia, garantiram a liberdade e retiraram-se da vida política (na verdade, foram despedidos pelos políticos de modo muito discutível…). Naquele tempo, os militares foram os principais responsáveis pelos acontecimentos mais marcantes.

 

Foram as eleições que deram os argumentos essenciais para a democracia que se seguiu. Foi graças a estas que os portugueses escolheram os seus representantes, as instituições e as políticas. O 25 de Abril permitiu as eleições, não as fez, quem as fez foram os portugueses, os partidos e os eleitores. Quem as permitiu foram os militares. Os civis colaboraram, influenciaram, participaram, acabaram por ganhar gradualmente poder de decisão e protagonismo, graças à retirada dos militares da cena política e das instituições. Já estava longe o 25 de Abril e lentamente os civis, com as decisões dos portugueses, escolheram a Constituição, organizaram o regime, elegeram os governantes e os representantes.

 

O notável esforço que se seguiu, nas obras, nas estradas, nas infra-estruturas colectivas, na protecção social, na educação, na saúde, na cultura, nas empresas e nas relações laborais foi obra de escolhas, de luta política, de combate ideológico, não foi obra do 25 de Abril, nem dos militares, muito menos dos grupos de civis que tentaram apoderar-se do Estado e do poder sob pretexto do 25 de Abril.

 

Os erros e disparates cometidos depois do 25 de Abril, a começar pela descolonização, pelas nacionalizações abrutalhadas e pelas ocupações de empresas, casas e herdades, não foram obra do 25 de Abril, foram, isso sim, feitos de homens e mulheres, de autoridades, de políticos, de eleitores e de nós todos que decidimos e escolhemos.

 

O 25 de Abril não tem herdeiros, nem legatários. Não tem testamenteiros nem proprietários. Não há fiscais do cumprimento do 25 de Abril. Não há sacerdotes da fidelidade aos princípios do 25 de Abril.

 

O 25 de Abril não pode servir como desculpa ou pretexto para todas as ideias políticas e sociais, para as injustiças e incompetências. O 25 de Abril não é culpado pelo mal que se fez, nem responsável pelo bem que se realizou.

 

O 25 de Abril não tem culpa do crescente desinteresse do Estado pelos serviços públicos. Isto é, não é por causa dele que os políticos e os partidos, sobretudo o PS e o PSD, deixaram a Justiça degradar-se e o SNS declinar.

 

O 25 de Abril não tem culpa na descolonização mal feita nem no tratamento infame infligido aos repatriados e retornados.

 

            O 25 de Abril não provocou a emigração de centenas de milhares de portugueses, nem a imigração de centenas de milhares de estrangeiros.

 

O 25 de Abril não é responsável pela permanente instabilidade das instituições políticas, pela sucessão de eleições antecipadas nem pelas repetidas dissoluções do Parlamento.

 

O 25 de Abril não é o autor nem o responsável pela persistência, na sociedade portuguesa, da corrupção, do favoritismo das cunhas e do nepotismo.

 

O 25 de Abril não tem responsabilidades no crescimento da mais forte corrente de demagogia que Portugal conheceu nos últimos vinte ou trinta anos e que é protagonizada pelo partido Chega…

 

Desde 1974, Portugal mudou muito. Bem e mal. Em muitos aspectos, progrediu e melhorou. Noutros, atrasou-se e marcou passo. O conforto e o bem-estar da população são incomparavelmente superiores. Mas a desigualdade e a pobreza persistem. Desapareceu o analfabetismo, mas a qualidade dos estudos, dos conhecimentos e da cultura deixam a desejar. Aumentaram muitíssimo a esperança de vida e o envelhecimento, mas nunca a natalidade esteve tão baixa e a má sorte dos idosos é chocante. Deixaram a agricultura centenas de milhares de portugueses e as cidades cresceram significativamente, mas a qualidade da vida urbana é medíocre e o cuidado pela lavoura e pelo campo desaparece. Houve enorme progresso tecnológico nas actividades produtivas e na vida quotidiana, mas as produções nacionais, tanto industriais como agrícolas, definham. As actividades culturais crescem por todo o pais, mas é enorme o escândalo da ruína do património cultural português. Há saúde para todos, mas quase dois milhões de pessoas não têm médico de família e as filas de espera por actos médicos são incomensuráveis.

 

De tudo o que precede, bem e mal, o 25 de Abril não é culpado nem responsável. Do que aqui consta e muito mais, os únicos responsáveis são os portugueses, as suas escolhas, as suas decisões. E é assim que deve ser.

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Público, 26.4.2025

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