29.3.25

Grande Angular - Propostas modestas

Por António Barreto

A actual crise política, cujo fim não se antevê, deixou claras várias deficiências da democracia e dos sistemas eleitoral e de governo. Tivemos um pouco de tudo. Governos minoritário e maioritário, governo formado pelo primeiro ou pelo segundo partido, governo de maioria absoluta demitido antes do fim do mandato, governo minoritário mantido à força de arranjos e governos de um só partido ou coligação. Um número claramente excessivo de eleições que não conseguiram criar governos de mandato, nem produziram soluções de estabilidade. Criou-se mesmo uma situação perigosa, a da certeza de que as crises políticas desencadeavam perturbações sociais, administrativas e dos serviços públicos.

 

Sem real necessidade e sem motivos de tensão, tem-se desenvolvido um mal-estar. Era bom que os partidos fizessem o que muitos lhes pedem que é de olhar um pouco mais para os cidadãos. Isso é certo, mas também poderiam olhar para si próprios e perceberem melhor o mal que fazem à democracia. Ou o mal que deixam que outros façam à democracia, o que vai dar ao mesmo.

 

Com a devida vénia a Mestre Jonathan Swift, eis umas propostas modestas que talvez fizessem bem à democracia. Destinam-se a reformar o sistema político, obrigando-o a estar mais atento aos cidadãos e menos orientado para a protecção dos partidos. Todas ou quase têm de comum o facto de exigirem revisão da Constituição, o que é parecido com a escalada de Sísifo. Mesmo nessas condições, é útil insistir. 

 

A primeira proposta é a de tornar obrigatória, no momento da sua apresentação ao Parlamento, a aprovação do programa de governo. Não mais as palermices de passagem com abstenção ou de suposta aprovação pela minoria. Não mais a coreografia dos espertalhões que dizem e não dizem, votam e não votam, calam-se para não ter de falar, em poucas palavras querem deixar abertas as portas para exercer chantagem contra o governo. O programa de governo exigiria um voto positivo e explícito da maioria dos deputados eleitos. Não haveria governos sem aprovação explícita, o que não é a mesma coisa do que confiança. Votar contra um programa não é a mesma coisa do que censurar. Não se limitam direitos dos deputados, mas exige-se que o governo respeite o eleitorado.

 

A segunda proposta é a de tornar obrigatória a eleição dos membros do governo. Por outras palavras, todos os ministros e secretários de Estado teriam de ser deputados eleitos. Isto é, garantir que o governo se forma dentro do Parlamento. Hipoteticamente, numa óptica de transição, só os secretários de Estado poderiam não ser eleitos. Na verdade, o ideal é que qualquer membro do governo tenha de ser deputado eleito. Um deputado membro do governo continua a votar leis como se deputado fosse. Ou então, se tiver de sair da Assembleia, é substituído pelo seu suplente, único também eleito e não pertencendo àquela infinita lista de substitutos putativos.

 

Terceira proposta, os deputados seriam eleitos nominalmente, a duas voltas, cada um obtendo assim sempre mais de 50% dos votos. O deputado eleito representa-se a si, ao eleitorado e ao seu partido, em vez de, como hoje, representar essencialmente o seu partido. Qualquer cidadão independente poderia candidatar-se a qualquer círculo, sem necessariamente ser membro de um partido. A seu lado, constaria sempre o nome de um suplente ou substituto. A candidatura de independentes sempre meteu medo aos partidos. Dizem que assim se retira força ao Parlamento e que se criam parlamentos sem lógica nem coesão. Está implícita a ideia de que os independentes têm qualidades (competência ou demagogia) que põem em causa os parlamentos democráticos. A verdade é que, perante a ameaça de candidatos independentes com qualidades e currículo, o que os partidos têm a fazer é de os ir buscar para as suas listas. Se não forem chamar os melhores, pior para eles, talvez melhor para nós.

 

Quarta proposta, os membros do governo, sobretudo os ministros, assim como todos os grandes funcionários e administradores do Estado, a começar pelas grandes instituições, depois de serem designados pelo governo, deveriam passar diante de uma comissão parlamentar e assim serem escrutinados ou avaliados, antes de começarem a sua acção.

 

Todo o sistema foi preparado para favorecer governos minoritários ou para remediar a sua inevitabilidade. Com esta engenharia, vai-se destruindo a democracia. Coligações com sentido e responsabilidade, maiorias de governo com coerência e boa articulação entre Governo e Parlamento poderão resultar destas reformas. É inacreditável o tempo e a energia que se perdem com as negociações de governos minoritários. 

 

            Os partidos políticos continuariam, evidentemente, a desempenhar funções primordiais na democracia. Nem poderia deixar de ser. Ou há partidos ou não há democracia. Mas esta seria o património de todos os cidadãos, com ou sem partido. Sem esquecer que qualquer cidadão poderia criar um partido para se candidatar ou fundar um depois de eleito. Os partidos passariam a prestar atenção aos cidadãos competentes, sérios e responsáveis, por si próprios, não apenas aos cidadãos obedientes e merecedores da confiança partidária. Votar livremente, no Parlamento, com ou sem partido, passaria a ser a regra, sabendo nós, todavia, que o frequente é os eleitos votarem mais vezes com o partido. Veja-se o que se passa na maior parte das democracias nas quais os partidos dependem dos eleitos e não o contrário.

 

Repare-se que quase todas as regras da Constituição e das leis eleitorais e dos partidos políticos, têm como principal objectivo defender os partidos, reduzir  a actividade política dos independentes e retirar eficácia ao escrutínio levado a cabo por cidadãos independentes. A legislação actual é feita, em tudo o que é essencial, para defender os partidos políticos existentes e para proteger quem já está dentro do sistema.

 

As eleições são idealizadas com vários fins. Talvez os dois mais importantes sejam o de garantir a representatividade e o de formar governo. Ao não exigir uma maioria nem a aprovação do programa de governo, o nosso sistema subalterniza o segundo critério. Ao não permitir candidaturas independentes nem círculos uninominais, o mesmo sistema favorece os partidos existentes e privilegia a representatividade dos partidos, não a dos eleitores. O nosso sistema político precisa de mais responsabilidade e mais confiança nos cidadãos. Às vezes, fica-se com a sensação de que o sistema político tem receio deles. 

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Público, 29.3.2025

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1 Comments:

Blogger Carlos Antunes said...

Dr. António Barreto
Julgo que não desconhece que a sua 3.ª proposta, de um sistema eleitoral em que os deputados seriam eleitos nominalmente, a duas voltas, cada um obtendo assim sempre mais de 50% dos votos (por maioria absoluta) é manifestamente inconstitucional por ofender o sistema de representação proporcional previsto na alínea h), do art.º 288º, da CRP.
Ou seja, a CRP não só estatui obrigatoriamente a eleição por sistema proporcional, como inclui esse princípio entre as "cláusulas pétreas", insusceptíveis de revisão constitucional (limites materiais da revisão).
Assim sendo, não percebo a insistência na apresentação de uma proposta deste jaez!

30 de março de 2025 às 16:20  

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