6.2.05

Estamos cheios de vocês

Por Carlos Pinto Coelho
NUNCA ESTOU CERTO de que falam comigo os que me interpelam por “você”, forma sincopada do antigo “vossemecê”. A RTP trata-me, sobranceiramente, por você quando anuncia um qualquer programa que quer que eu veja. A TVI também, mas a linguagem da outra é que é de serviço público. O mesmo com a publicidade da Vodafone, que me trata por tu ou por você a toda a hora, embora admita que é o você que mais me assanha. A minha amiga Maria João Avillez também usa abundantemente o você com alguns dos seus convidados, e não gosto de lho ouvir. A voz imperativa de João David Nunes, vendendo estreias de filmes nos “spots” de televisão, não me poupa no “você não vai perder…” O senhor Manuel, meu padeiro alentejano deseja-me, afectuosamente, “tenha você bom fim-de-semana”. Um jovem novato da FNAC de Cascais ofereceu-se para me ajudar a encontrar um livro do Sttau Monteiro dizendo” você vá até lá ao fundo e está lá”. O agente da GNR que me controlou a carta de condução atirou-me um “você conduza com cuidado, que a estrada está perigosa”. Por razões que são obviamente diferentes, estes vocês todos nunca me encontram, escorregam na carapaça da minha revolta surda. Não haverá quem explique que a palavrinha você pode ser inapropriada, ou grosseirona, ou ambas as coisas?
Os brasileiros têm o você no diapasão da segunda pessoa mas com flexões verbais da terceira e isso é lá com eles. Mas cá em Portugal, não: o você é tratamento dirigido a pessoa de inferior condição (Cândido de Figueiredo), é forma de tratamento dirigida a pessoas de condição humilde (Almeida Costa/Sampaio e Melo), é contracção de tratamento dirigido a pessoas de condição inferior ou empregada entre pessoas de muita intimidade (José Pedro Machado).
Que diabo de tontice deu agora, de repente, aos profissionais da publicidade e aos semi-analfabetos, para me tratarem por você na TV e na rádio, como se eu lhes fosse inferior ou privassem de perto comigo? A Maria João Avillez podê-lo-ia, por estatuto de amizade, mas não o faz – trata-me por tu. Os outros fazem-no mas não o poderiam – por nenhuma das razões.
Isto para chegar aos dislates da querela eleitoral, durante a semana que se foi. Eles nem precisaram de se tratar por você, para tornarem sumamente desgostante o tom das calúnias veladas, das insinuações torpes, das porcarias mentais que atiraram para a praça pública. Eles não são todos, como todos sabemos. Mas foram os bastantes para tornar intolerável o ambiente e degradante o debate a que temos direito. Ao ponto de um dos ofendidos ter tido, em pleno serão televisivo, de invocar a sua família próxima para reagir a algumas das aleivosias mais sussurradas por aí.
Irra! O país é demasiado pequeno para tantos vocês que se praticam por aí!
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«A Capital» - 6 de Fevereiro de 2005

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2 Comments:

Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Exacto!

Irrita-me particularmente o meu médico-de-família (que é uma dúzia de anos mais novo do que eu) que acha por bem tratar-me por "você" enquanto eu o trato por Sr. Dr.

Apetece-me retribuir-lhe o tratamento, mas há algo - que deve ter a ver com "chá"... - que mo impede.

6 de fevereiro de 2005 às 17:35  
Anonymous Anónimo said...

Resposta ao CPC

Vocemecê é um artista da palavra, a quem infelizmente não tenho bagagem para acompanhar, nem mesmo a dar de frosques!

Verdade que, se eles nos descortinam,corremos o risco elevado de virmos a ser vilipendiados ainda mais estridentemente, por destacados vultos da cultura dominante, mestres da moderna retórica, donde se esvaíu o valor do vocábulo e onde não consta a importância do verbo,ambos arredados da convenção das maneiras.

Perseguir-nos-ão (ou perseguirão-nos, como nos roda-pés da TV?) em matilha ou em cardume, conforme escolham entre as hienas e as piranhas.Ignoro as preferências deles no que à zoologia diz respeito, ainda que suspeite o favor que dediquem ao género a incarnar, razão pela qual escolhi tanto a hiena como a piranha, ambas espécies no feminino.

Queira Vossa Mercê aceitar os protestos da minha mais elevada consideração!

Joaquim Letria

9 de fevereiro de 2005 às 08:39  

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