16.12.05

A empresa de Táxis «Simpatia»

Aventuras e desventuras
de Jeremias
na
Sociedade da Informação

(…) Ora, para meu azar, o táxi que costumava parar mais vezes na praça em frente do escritório do Januário era o do Tropelício Salpicão, um exemplar daquela espécie minoritária de taxistas maldispostos em que todos nós já tropeçámos. (...)
(Texto integral em «Comentário-1»)

1 Comments:

Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

TÁXIS SIMPATIA

(…)Ora acontecia que, para meu azar, o táxi que costumava parar mais vezes na praça em frente do escritório do Januário era o do Tropelício Salpicão, um exemplar daquela espécie minoritária de taxistas maldispostos com que todos já tropeçámos.

Por isso, sempre que eu via que era aquela prenda que me ia sair na rifa, esperava até que ele se fosse embora com algum infeliz cliente... ou ia em busca de outro táxi (nem que para isso tivesse que andar a pé um bom bocado).
Ora um dia, conversando com o Januário acerca desse assunto, ele comentou:

-Deste-me agora uma grande ideia! Vou montar um negócio de táxis só com motoristas simpáticos! Vou pôr a funcionar as novas e as velhas tecnologias!

*
Dias mais tarde, quando eu já nem pensava nessa história, ele disse-me (como se a conversa tivesse ficado interrompida apenas dois minutos atrás):

-Vai chamar-se «Táxis Simpatia», e o seu lema podia ser: «Onde ninguém o manda para a sua tia».

Mas a coisa não ia ser fácil, a começar pelo facto de ele precisar de desencantar uma meia-dúzia de voluntários que quisessem alinhar com ele e satisfizessem os seus requisitos, mesmo que não fossem muito exigentes.

E, mais uma vez durante algum tempo, não voltámos a falar no assunto.

Até que, um belo dia...

*

Bem… imaginam o meu espanto quando, ao sair do escritório do nosso amigo, deparei com o carro do Tropelício Salpicão todo decorado com florinhas azuis e, como logótipo, um enorme «T.S.» em letras góticas!

Seriam as iniciais do homem?

Voltei para trás, desconfiado, e pedi explicações ao grande empresário.

-Ai tu ainda não apanhaste nenhum táxi da nova frota?! Pois olha que já arranjei um, para começar. E estamos a facturar em beleza!

Era agora claro: «T.S.» significava...

«TÁXIS SIMPATIA»!

-Mas não desencantavas ninguém mais apropriado do que aquela besta?! - Inquiri eu, sem perceber nada.

Mas o Januário não me explicou logo o que se passava.

Disse-me apenas que esperasse um pouco, deu uma arrumação rápida ao escritório, apagou as luzes e saiu comigo, fechando a porta, e assobiando, muito bem-disposto.

Em seguida, dirigiu-se para o táxi do Tropelício levando-me pelo braço.

Para meu espanto o homem, ao ver-nos, saiu do carro, ajeitando as fraldas da camisa, e veio abrir-nos a porta, cumprimentando-nos com uma vénia e um rasgado sorriso.
Tratava o Januário por estimável patrão e, a mim, por esmerado cliente!

Depois refastelou-se de novo no seu banco, ajeitou a gola que o incomodava na zona do pescoço, deu uma cuspidela pela janela fora, atirou para a rua um maço de tabaco vazio amarfanhado, esfregou as mãos demoradamente, pôs o carro em andamento... e, exclamando «Vamos lá a isto!», carregou num botão.

E nesse botão, pelos vistos, é que estava O GRANDE SEGREDO!

Se o ambiente do carro já era celestial - cheirando a alfazema e a rosmaninho - imagine-se agora como ficou quando uma agradável música de fundo se fez ouvir!

O Tropelício Salpicão, sempre sorrindo, carregou noutro botão. E, sem deixarmos de ouvir a banda sonora (que agora dava chilreios de passarinhos e marulhar de ondas do mar), escutámos uma voz, entre o roufenho e o melodioso:

-Bem-vindos à Unidade Número Um (tosse) da Frota de Táxis Simpatia! O meu nome (tosse) é Tropelício Salpicão, e será para mim um enorme prazer (tosse) conduzir-vos ao vosso destino, seja ele perto ou longe (tosse-tosse)...

Eu nem queria acreditar! Tanto mais que a voz, embora gravada, parecia sincera e convincente, além de ser do próprio Tropelício, pessoa que eu sempre julgara incapaz de pronunciar tais frases!

-Isto teve muito ensaio! Esta cavalgadura teve muito ensaio! Foi pior de ensinar que o urso do Circo Barney a andar de skate! - Explicava-me o Januário, sem sequer se preocupar em baixar a voz.

O taxista continuava a sorrir e, quando chegámos ao nosso destino, saiu do seu lugar e veio abrir-nos a porta, de boné na mão! Não sem que antes a sua voz gravada nos tivesse informado que fazia votos que a viagem tivesse sido agradável, esperando voltar a ter-nos de novo a bordo da viatura, etc...

Um espanto!

E no entanto, para cúmulo, ainda houvera alguns bons ingredientes para enlouquecer um taxista normal:

A corrida fora curta, o Januário pagara-lhe com a maior nota que encontrara na carteira (obrigando o homem a fazer um complicado troco), atirara com a porta... e nem sequer lhe dera gorjeta!
Esclareceu-me:

-Eu, apesar de patrão, também pago a este estafermo...

E o outro sempre de sorriso rasgado!

-Custou, mas transformei este camelo num ser humano alegre e educado! Muita cachaporrada dei eu naquela cabeça de burro!- Declarou o Januário enquanto guardava o gigantesco troco.

-Tu és maluco, homem?! Então estás com essas bocas na frente dele?-Comentei eu, em surdina, enquanto o Salpicão nos cumprimentava efusivamente, despedindo-se.

-Este hipopótamo não nos ouve...

Não era possível! Então o homem teria ficado surdo ultimamente?! Grande novidade!

Mas nada disso. Simplesmente, o nosso taxista trazia qualquer coisa a tapar-lhe os ouvidos; uma espécie de auscultadores!

Pedi explicações ao Januário que, de pronto, me esclareceu:

-Não, meu caro amigo. Aquilo não é uma espécie de auscultadores... Aquilo são auscultadores MESMO. E o segredo do sucesso está precisamente no que ele está a ouvir!

Ah! Então o homem escutava música, notícias, anedotas, relatos de futebol... Enfim, qualquer coisa que lhe dava gosto e o punha bem-disposto... O Januário era, de facto, um génio!

Nessa altura, porém, aconteceu uma coisa que ainda me esclareceu melhor:

O Salpicão, para se coçar numa das orelhas e raspar cera da outra, tirou, por momentos, os auscultadores.

E deu para ouvir a tal música que, apesar de muito repetitiva, pelos vistos tanto lhe agradava:

«Clientes de merd*! Cambada de filhos da put*! Clientes de merd*! Cambada de filhos da put*!...»

16 de dezembro de 2005 às 15:41  

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