O Herr Müller - 1
UM DIA, estava eu, na rua, a conversar com a D. Rosa, quando ela me chamou a atenção para um senhor de meia-idade, visivelmente estrangeiro, gorducho e dono de uma luzidia careca que, ajeitando os seus óculos de aros finos se esforçava por decifrar um letreiro afixado no vidro de um carro.
Ao ver que olhávamos para ele, o cavalheiro não se mostrou agastado; antes pelo contrário, fez menção de falar connosco, no seguimento do que eu me ofereci para o ajudar, dado que era evidente que era isso que pretendia.
Ora, ainda antes de entabularmos conversa (que, afinal, não foi tão difícil quanto cheguei a pensar), dei uma espreitadela para o tal papel que era o alvo da sua atenção e constatei que se tratava de um dos habituais anúncios de venda de carros.
E foi a D. Rosa que me chamou a atenção para o curioso facto de o número de telefone lá indicado ser uma capicua…
Não tardei a perceber que fora isso, precisamente, o que chamara a atenção do distinto cavalheiro, mas aquilo para que pediu a minha ajuda foi diferente:
- Onde é que posso comprar o telefone que ali diz?
Claro que não percebi a pergunta, pois o que estava anunciado era a venda do carro.
Mas, lendo melhor o papel, e tendo em conta que o senhor era estrangeiro, percebi a confusão que muito bem se podia apossar de quem, pela primeira vez, lesse uma frase do género:
Depois de perceber o mal-entendido (a que ele, por sinal, não achou qualquer graça), apresentámo-nos:
Dei-lhe o meu cartão-de-visita, a D. Rosa disse como se chamava (acrescentando, a um sorriso, uma pequena mas respeitosa vénia), e ele, por sua vez, abriu a carteira, de onde tirou uma folhinha dobrada que me passou para a mão.
Abria-a, e vi que continha os seus dados pessoais: nome (chamava-se Müller) e morada, além de três grandes pontos-de-interrogação a vermelho nos sítios onde deveriam constar o número de telefone, o endereço de correio electrónico e o de uma página Web.
Explicou-nos (embora com alguma dificuldade por lhe escassearem os termos em português) que era um técnico alemão em vias de se fixar em Portugal.
Já tinha comprado uma casa num velho e sossegado bairro de Lisboa (era a morada que estava indicada no papel), e agora só lhe faltava arranjar um número de telefone, um endereço de e-mail e uma página na Internet para iniciar a sua actividade entre nós.
Até aí, não havia nada de espantoso, mas já não pude continuar a pensar o mesmo quando soube que essa situação já se prolongava há mais de um mês!
Que diabo! Então qual era a dificuldade em arranjar um número de telemóvel e um endereço de correio electrónico?
Quanto à página na Internet – aí, bem… – podia ser que ele tivesse algumas compreensíveis dificuldades…
E foi a D. Rosa que me bichanou ao ouvido que, se calhar, estava ali uma boa oportunidade para eu ganhar algum dinheiro com pouco trabalho, até porque o escritório do alemão ficava em caminho do do Flagelário, onde eu frequentemente vou.
Estava a conversa a cair num impasse quando começou a chuviscar mas, como havia ali perto um café, dirigimo-nos para ele; e a D. Rosa, sempre coscuvilheira, e embora já estivesse atrasada para o trabalho, entrou connosco, sentou-se sem cerimónias à mesma mesa, e mandou vir o seu habitual descafeinado em chávena de porcelana escaldada.
- Tenho andado em busca de um número de telefone que satisfaça duas condições muito importantes para mim – explicou-nos então o Sr. Müller, enquanto mexia o café – e em parte é por isso que nunca mais mando fazer os meus cartões-de-visita…
Portanto, aquela folha que me mostrara (e que, entretanto, me pedira de volta) destinava-se a mandar fazer esses cartões – uma vez definidas as três coisas que faltavam.
E prosseguiu:
- Além do mais, eu ainda falo mal a vossa língua, pelo que me interessa um número de telefone que seja fácil de pronunciar quando mo perguntarem por boca.
O resto da história custou-me muito a crer mas, a acreditar no Sr. Müller, ele tinha conseguido, após uma interferência diplomática de alto nível, que a PT lhe desse um número que parecia impossível:
Espantado com o que ouvia, não resisti a interrompê-lo para lhe fazer notar que, sendo o 666 o famigerado número-da-besta, um número de telefone em que ele figurasse – ainda por cima em triplicado! - Não era, possivelmente, uma escolha muito feliz!
- Eu sei – respondeu-me ele –, mas foi de propósito, pois eu, nas horas vagas, também vendo livros sobre esoterismo.
- Então, sendo assim, correu tudo bem e ao seu gosto… – comentou a D. Rosa que acompanhava a conversa com muita atenção e se esforçava por apanhar um pretexto para dizer qualquer coisa.
- Pois… ao princípio pensei que sim. Mas em breve comecei a ter problemas…
Demorou algum tempo, mas acabei por perceber o que se passava:
É que, quando o Sr. Müller começava a dizer o 666… as pessoas, espantadas com esse número fora do normal, pediam confirmação.
E quando ele dizia «Sim, nove seis!», ouvia muitas vezes a resposta que o enlouquecia:
- Está bem, 96… mas qual é o resto do número?!
Na altura, eu e a D. Rosa conseguimos conter o riso.
Explicámos-lhe o que se passara, e prometemos que, mais tarde, iríamos com ele a uma loja de telemóveis escolher um número bonito.
E passámos ao problema seguinte: o endereço de correio electrónico, desconfiando eu que se podia tratar de algo semelhante – e, na realidade, até estava relacionado com o caso da Home-Page:
Sucedia que, sem que ninguém lhe explicasse, não lhe aceitavam a letra “Ü” nos endereços, problema esse que, por sinal, os alemães já resolveram há muito tempo substituindo-a por “UE” sempre que necessário.
Assim, ele só teria de utilizar o nome Mueller em vez de Müller.
Ficou tão satisfeito quando lhe dei conta desse verdadeiro ovo-de-Colombo que fez questão de nos pagar os cafés.
- Então o problema era do… do…
Não atinando com a palavra que faltava, meteu a mão no bolso do sobretudo, tirou dele um minúsculo dicionário e, enquanto procurava o que queria, foi dizendo:
- Como é que se diz quando alguém tem medo ou muito frio…?
- Trema? – Perguntou, a medo, a D. Rosa.
Ao ver que olhávamos para ele, o cavalheiro não se mostrou agastado; antes pelo contrário, fez menção de falar connosco, no seguimento do que eu me ofereci para o ajudar, dado que era evidente que era isso que pretendia.
Ora, ainda antes de entabularmos conversa (que, afinal, não foi tão difícil quanto cheguei a pensar), dei uma espreitadela para o tal papel que era o alvo da sua atenção e constatei que se tratava de um dos habituais anúncios de venda de carros.
E foi a D. Rosa que me chamou a atenção para o curioso facto de o número de telefone lá indicado ser uma capicua…
Não tardei a perceber que fora isso, precisamente, o que chamara a atenção do distinto cavalheiro, mas aquilo para que pediu a minha ajuda foi diferente:
- Onde é que posso comprar o telefone que ali diz?
Claro que não percebi a pergunta, pois o que estava anunciado era a venda do carro.
Mas, lendo melhor o papel, e tendo em conta que o senhor era estrangeiro, percebi a confusão que muito bem se podia apossar de quem, pela primeira vez, lesse uma frase do género:
VENDE-SE TELEFONE 21…..12
Depois de perceber o mal-entendido (a que ele, por sinal, não achou qualquer graça), apresentámo-nos:
Dei-lhe o meu cartão-de-visita, a D. Rosa disse como se chamava (acrescentando, a um sorriso, uma pequena mas respeitosa vénia), e ele, por sua vez, abriu a carteira, de onde tirou uma folhinha dobrada que me passou para a mão.
Abria-a, e vi que continha os seus dados pessoais: nome (chamava-se Müller) e morada, além de três grandes pontos-de-interrogação a vermelho nos sítios onde deveriam constar o número de telefone, o endereço de correio electrónico e o de uma página Web.
Explicou-nos (embora com alguma dificuldade por lhe escassearem os termos em português) que era um técnico alemão em vias de se fixar em Portugal.
Já tinha comprado uma casa num velho e sossegado bairro de Lisboa (era a morada que estava indicada no papel), e agora só lhe faltava arranjar um número de telefone, um endereço de e-mail e uma página na Internet para iniciar a sua actividade entre nós.
Até aí, não havia nada de espantoso, mas já não pude continuar a pensar o mesmo quando soube que essa situação já se prolongava há mais de um mês!
Que diabo! Então qual era a dificuldade em arranjar um número de telemóvel e um endereço de correio electrónico?
Quanto à página na Internet – aí, bem… – podia ser que ele tivesse algumas compreensíveis dificuldades…
E foi a D. Rosa que me bichanou ao ouvido que, se calhar, estava ali uma boa oportunidade para eu ganhar algum dinheiro com pouco trabalho, até porque o escritório do alemão ficava em caminho do do Flagelário, onde eu frequentemente vou.
Estava a conversa a cair num impasse quando começou a chuviscar mas, como havia ali perto um café, dirigimo-nos para ele; e a D. Rosa, sempre coscuvilheira, e embora já estivesse atrasada para o trabalho, entrou connosco, sentou-se sem cerimónias à mesma mesa, e mandou vir o seu habitual descafeinado em chávena de porcelana escaldada.
- Tenho andado em busca de um número de telefone que satisfaça duas condições muito importantes para mim – explicou-nos então o Sr. Müller, enquanto mexia o café – e em parte é por isso que nunca mais mando fazer os meus cartões-de-visita…
Portanto, aquela folha que me mostrara (e que, entretanto, me pedira de volta) destinava-se a mandar fazer esses cartões – uma vez definidas as três coisas que faltavam.
E prosseguiu:
- Além do mais, eu ainda falo mal a vossa língua, pelo que me interessa um número de telefone que seja fácil de pronunciar quando mo perguntarem por boca.
O resto da história custou-me muito a crer mas, a acreditar no Sr. Müller, ele tinha conseguido, após uma interferência diplomática de alto nível, que a PT lhe desse um número que parecia impossível:
666 666 666
Espantado com o que ouvia, não resisti a interrompê-lo para lhe fazer notar que, sendo o 666 o famigerado número-da-besta, um número de telefone em que ele figurasse – ainda por cima em triplicado! - Não era, possivelmente, uma escolha muito feliz!
- Eu sei – respondeu-me ele –, mas foi de propósito, pois eu, nas horas vagas, também vendo livros sobre esoterismo.
- Então, sendo assim, correu tudo bem e ao seu gosto… – comentou a D. Rosa que acompanhava a conversa com muita atenção e se esforçava por apanhar um pretexto para dizer qualquer coisa.
- Pois… ao princípio pensei que sim. Mas em breve comecei a ter problemas…
Demorou algum tempo, mas acabei por perceber o que se passava:
É que, quando o Sr. Müller começava a dizer o 666… as pessoas, espantadas com esse número fora do normal, pediam confirmação.
E quando ele dizia «Sim, nove seis!», ouvia muitas vezes a resposta que o enlouquecia:
- Está bem, 96… mas qual é o resto do número?!
Na altura, eu e a D. Rosa conseguimos conter o riso.
Explicámos-lhe o que se passara, e prometemos que, mais tarde, iríamos com ele a uma loja de telemóveis escolher um número bonito.
*
E passámos ao problema seguinte: o endereço de correio electrónico, desconfiando eu que se podia tratar de algo semelhante – e, na realidade, até estava relacionado com o caso da Home-Page:
Sucedia que, sem que ninguém lhe explicasse, não lhe aceitavam a letra “Ü” nos endereços, problema esse que, por sinal, os alemães já resolveram há muito tempo substituindo-a por “UE” sempre que necessário.
Assim, ele só teria de utilizar o nome Mueller em vez de Müller.
Ficou tão satisfeito quando lhe dei conta desse verdadeiro ovo-de-Colombo que fez questão de nos pagar os cafés.
- Então o problema era do… do…
Não atinando com a palavra que faltava, meteu a mão no bolso do sobretudo, tirou dele um minúsculo dicionário e, enquanto procurava o que queria, foi dizendo:
- Como é que se diz quando alguém tem medo ou muito frio…?
- Trema? – Perguntou, a medo, a D. Rosa.
2 Comments:
Espero que tenha continuação!
D.R.
Sim, há mais alguns capítulos.
Ou melhor: há um capítulo longo que, possivelmente será dividido em 2 ou 3.
Amanhã logo se vê.
Abraço
CMR
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