8.1.06

O livro científico na universidade (*)

NOS ESTUDOS literários, os estudantes devem ler textos clássicos, usar gramáticas, dicionários e outras referências.
Em matemática e ciências, é também imprescindível que o estudante se habitue a consultar manuais.
Faz parte da sua preparação universitária aprender a lê-los e aprender a usá-los para resolver dúvidas e procurar novos desenvolvimentos.

Parece estar a chover-se no molhado.
Mas basta levantar algumas questões, para se ver que o alerta não é vão.
Pense-se, por exemplo, em quantos estudantes universitários terminam o curso habituados a ler textos.
Na maioria, estudaram a partir de apontamentos e de fotocópias de exercícios. Muitos não abriram nenhum livro sério — ou abriram-no e logo o fecharam. Pergunte-se quantos deles terminaram o curso guardando um livro a que possam recorrer, 10 anos depois, para esclarecer se existem funções contínuas não diferenciáveis ou o que é um eléctrodo polarizado ideal.

Os elementos de estudo mais frequentes nas nossas universidades e politécnicos continuam a ser os apontamentos das aulas.
São péssimas fontes de estudo, pois contêm imprecisões incontroláveis.
São o produto de um processo sujeito a muito ruído, em que todos os intervenientes se enganam.
Mais frequentemente do que gostaria, o professor anuncia x e escreve y quando estava a pensar em z.
O aluno escreve w quando ouviu x.
Mais tarde, quando vai ler as suas notas apressadas, lê v onde julgava ter escrito w.

Com sebentas ou folhas, não se passa exactamente o mesmo.
Mas subsistem deficiências graves.
Continua a haver muitos erros e omissões.
Mais grave ainda, a sabedoria que nelas se inclui vem do céu — é assim porque é assim.
Quem queira explorar melhor alguma matéria ou confirmar alguma afirmação não tem nenhuma indicação de onde pode recorrer.
Não há referências. Não há bibliografia.

Mesmo quando as folhas juntam fotocópias de bons livros, não existem índices correctamente organizados, nem referências bibliográficas nem um encadeamento de ideias.
Com esses materiais o aluno habitua-se a estudar tópicos dispersos e a decorar técnicas, sem perceber a sua unidade.

Um bom manual tem características que fazem dele mais do que uma lista de conhecimentos.
É tão auto-suficiente quanto possível — as definições essenciais estão nele contidas.
As referências que permitem aprofundar os temas estão presentes na bibliografia.
Os créditos estão devidamente atribuídos.
A sequência das matérias é clara e as numerações ou outras referências estão bem estabelecidas.
Além disso, existe habitualmente um bom índice remissivo, que permite procurar rapidamente tópicos essenciais.
E existem bons exercícios, que permitem verificar a assimilação das matérias, treiná-la e aprofundá-la. Finalmente, existe uma revisão cuidada, pois o livro é examinado por várias pessoas, passa por milhares de leitores e sofre emendas ao longo de sucessivas edições.
São estes os bons manuais.
Se olharmos para grande número de «livros» presentes no mercado nacional verificamos que eles não são realmente livros, são folhas encadernadas.

O estudante de matemática, engenharia, economia ou outras áreas técnicas sai da universidade semianalfabeto se passar todos os seus estudos superiores sem nunca ter lido um manual de referência.
Não terá adquirido a experiência de ler autonomamente, que é uma destreza que apenas se adquire com treino.
Ler não é tão fácil como ouvir ou ver.

Sai semianalfabeto também porque nunca passou pela experiência de procurar um resultado, de seguir sozinho um argumento em diálogo com o livro, de procurar referências e clarificações, de esclarecer o significado das notações, de caminhar para referências complementares.
Por estranho que pareça, há alunos que não sabem usar os índices remissivos nem procurar uma referência bibliográfica.
Por vezes, não sabem distinguir a citação de um livro da de um artigo de revista científica.

Alguns professores argumentam, dizendo que os manuais que conhecem são demasiadamente avançados ou demasiadamente elementares.
Outros ainda escolhem mais do que um manual e apontam na bibliografia quatro ou cinco, quando não 10 ou 20, que é o caminho directo para os alunos não lerem nenhum livro.
Os manuais não servem para contentar os professores quanto ao rigor ou profundidade de tratamento dos temas, nem para mostrar aos seus colegas docentes como a sua cadeira está avançada.
Servem para ajudar os alunos no estudo, para situar a matéria, para disponibilizar definições e referências, para apontar exercícios, desafios ou pistas.
Podem ser superficiais para gosto dos professores, mas prestarem uma grande ajuda aos estudantes e encaminhá-los na leitura autónoma.

A complacência com um ensino sem referências é um vício pior que uma escolha imperfeita.
O livro continua a ser insubstituível.
Estará o Ensino a fazer o melhor que pode?
--
Texto de Nuno Crato para o 1º aniversário do «SORUMBÁTICO»

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6 Comments:

Blogger SDF said...

Excelente texto!

Faltou talvez referir as situações em que as bibliografias remetem para manuais obsoletos, os exames estão parametrizados para conceitos obsoletos, e não existe o cuidado da sua revisão durante anos lectivos a fio, onde a consequência é evidentemente o MAU ENSINO.

Em Agosto de 2004 tropecei, por mero acaso, com uma situação dessas. No ãmbito de uma cidadania activa, dirigi-me à universidade em causa, reuni com o director do departamento do curso a que pertencia a cadeira onde tinha encontrado estas situações e alertei-o para a gravidade das mesmas. No final desta reunião, deixei notas manuscritas orientativas da revisão que se impunha. Foi-me garantido que o assunto iria ser tratado séria e brevemente. Acreditei.

!7 meses depois, quase por descargo de consciência, fui verificar o que tinha sido feito. O resultado da verificação foi assustador: RIGOROSAMENTE NADA!

Contactei de imediato a reitoria. Pedi uma reunião e informei que caso continuem a ignorar a situação, a encaminharei para a IGCES (Inspecção Geral da Ciência e do Ensino Superior).

Aguardam-se desenvolvimentos...

8 de janeiro de 2006 às 20:21  
Blogger António Viriato said...

Se o Sorumbático já cumpriu o 1º aniversário, dou-lhe os meus naturais parabéns e desejo-lhe longa vida. Quanto ao texto oportuno do Nuno Crato, só tenho de o elogiar também. Há muito que se nota a degradação dos livros escolares. No secundário, onde estão os sucessores dos manuais de Matemática de Sebastião e Silva. Na Física, onde os de J.Teixeira; na Química, os de Alice Maia Magalhães e Túlio lopes Tomaz; na Geologia, os de Natércia Guimarães e Augusto Medina, para só citar alguns livros de referência do antigo 3º ciclo liceal. E, no Superior, julgo que o panorama também não será brilhante, tirando o recurso aos autores estrangeiros, onde estão os continuadores dos manuais de Campos Ferreira, de Dias Agudo, por exemplo ? Bem sei que os Professores se afadigam com a investigação, mas um bom Professor deveria ter o gosto e a honra de publicar um livro de texto de qualidade das matérias que ensina e não apenas sebentas mal amanhadas, escritas à pressa, em mau português, a pretexto de que não se trata de matéria literária, nem de obra definitiva, que, de resto, nunca mais publica. Comparem-se os textos científicos dos autores acima referidos, como os de alguns coevos e atente-se nas diferenças : no rigor, na clareza de exposição e no domínio da língua. Só os bons Mestres criam paradigmas e suscitam entusiasmo na apreensão das matérias. Sem eles, o Ensino definha, torna-se desinteressante e não desperta vocações, ou só em número escasso, muito aquém do que precisamos.

8 de janeiro de 2006 às 20:23  
Blogger SDF said...

correcção ao meu comentário acima:

17 meses (DEZASSETE) e não "!7" (exclamação sete).

Mais concretamente, de Agosto de 2004 a Janeiro de 2006. O que inclui 2 anos lectivos de continuado MAU ENSINO, mesmo após receberem o alerta por parte de um cidadão, de algo que deveriam ter capacidade interna para verificar.

8 de janeiro de 2006 às 22:19  
Blogger cãorafeiro said...

excelente artigo!

um exemplo paradigmático do que é um bom manual:

ECONOMIA, de PAUL SAMUELSON

actualizado a cada nova edição, este manual tem servido de referência imprescindível a várias gerações de estudantes.

9 de janeiro de 2006 às 16:36  
Blogger Pedro said...

A minha experiência discorda da opinião de Pedro Silva quanto à qualidade dos manuais produzidos pelos professores portugueses.
Enquanto aluno de faculdade partilhei responsabilidades na secção da Associação de Estudantes responsável pela edição em formato de livro de textos generosamente facultados pelos professores. Digo generosamente porque os professores prescindiam dos lucros (que pudessem ter se entregassem os livros a uma editora) para garantir aos alunos materiais baratos.
Naturalmente não posso assegurar a qualidade da totalidade dos manuais que publicávamos mas posso garantir que aqueles de que fiz uso enquanto estudante eram de grande qualidade.

Sobre o texto de Nuno Crato duas notas: a primeira é sublinhar o preço proibitivo dos manuais e a segunda o facto de os livros de referência serem escritos em inglês o que, infelizmente, ainda é uma inibição para muitos dos nossos estudantes universitários.

9 de janeiro de 2006 às 19:30  
Blogger Elisa said...

Teria muito a dizer sobre este assunto, mas como muito também já foi dito fica apenas aqui este breve comentário : é pena que os outros docentes dessa faculdade que tão bem conhecemos, o ISEG, não pensem da mesma forma...


P.S.- Mudar todos os anos de manual (como aconteceu a Matemtica 1 de Gestão no Iseg, numa cadeira com tao grandes taxas de insucesso, também não é a melhor solução.

18 de janeiro de 2006 às 10:22  

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