6.2.06

MATCH POINT (*)

NO SEU último filme, Woody Allen mostra-se mais uma vez um realizador magistral. Mas mostra-se também um homem versado em filosofia.
Woody costuma dizer que é um homem simples, dado à cerveja e ao baseball.
Mas nós sabemos que há quem goste de esconder uma cultura requintada por detrás de uma aparência simples.
«Match Point» é um filme sobre o acaso e sobre as escolhas morais.
A referência a Dostoievsky e ao «Crime e Castigo» é evidente.
Quem tenha lido o romance do escritor russo verá que, desse ponto de vista, o filme termina a meio.
Será que a personagem central do filme vai agir como o estudante Raskolnikov?
No livro, o sentimento de culpa e a escolha moral decidem o fim.
No filme, fica-se sem o saber.
O acaso e a imprevisibilidade imperam até às últimas cenas.
E para lá delas.
Logo no início mostra-se uma bola de ténis que embate no bordo da rede e ressalta.
A imagem imobiliza-se e a bola parece parada.
Cai depois muito lentamente.
Ouve-se a voz do narrador: «com um pouco de sorte ela cai para a frente e ganhas... mas também pode acontecer o contrário, e nesse caso perdes».
Ninguém pode saber o que se irá passar e, por vezes, todo o resultado do jogo depende dessa jogada final. É o match point.

Talvez seja um acaso — mais um! — mas o embate da bola no bordo da rede e a impossibilidade de prever de que lado ela irá cair lembra um argumento célebre contra o determinismo.
Trata-se de uma experiência conceptual apresentada em 1953 por um físico norte-americano de origem alemã chamado Alfred Landé (1888–1976).

Em meados do século XX, quando a discussão sobre a incerteza do mundo físico e a interpretação da mecânica quântica continuavam muito polémicas, Landé avançou um exemplo em que «bolas de marfim caem por um tubo para o centro de uma lâmina de aço, observando-se uma razão média de 50 contra 50 entre as bolas que caem para a direita e as que caem para a esquerda».
Tudo pode parecer completamente casual, mas «um físico mais arguto pode ser capaz de ver antecipadamente que uma determinada bola possuía uma determinada propensão», afirma Landé.
E pode tentar eliminar os factores aparentemente aleatórios que fazem com que uma bola caia para a esquerda e outra para a direita.

Até aqui, Landé não se distingue dos físicos deterministas do Iluminismo, nomeadamente do francês Pierre Simon de Laplace (1749–1827), que pensava não haver acaso, mas apenas causas desconhecidas.
O interessante no argumento de Landé é o seu seguimento.
Diz o físico que, por mais que se procurem eliminar irregularidades, continua a haver incertezas irredutíveis. Pode tornar-se a lâmina mais perfeita, as bolas mais esféricas e o ar circundante menos turbulento.
No fim de tudo isso, pode-se ainda deixar cair as bolas sobre a lâmina de tal modo que metade vá para um lado e outra metade para outro, continuando sem se saber prever o trajecto de cada bola individual.
Eliminar irregularidades e incertezas significa pois tornar o acaso ainda mais perfeito, fazer com que o rácio de 50 contra 50 fique mais exacto.
o contrário do que pensava Laplace, há uma aleatoriedade irredutível no mundo.

O argumento de Landé foi importante na interpretação filosófica da física moderna por razões várias.
Talvez a principal tenha sido permitir pôr em causa o determinismo sem necessitar da mecânica quântica.
E mostrar que o problema filosófico da previsibilidade é independente da interpretação que dela se faça. Jogue ou não Deus aos dados, no nosso mundo lançam-se dados que caem de forma imprevisível.
Por vezes decidem o «match point».
--
(Adapt. do «Expresso»)

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Acerca da experiência conceptual de Landé, não sei se a conclusão é legítima.

O facto de se procurar tornar a lâmina mais perfeita, as bolas mais esféricas e o ar circundante menos turbulento e, ainda assim, continuarmos a observar uma distribuição de 50-50% nas bolas que caem para um lado e para o outro da lâmina, possivelmente não nos permite tirar conclusões acerca da existência ou não do determinismo de Laplace.

Até que ponto as nossas tentativas de eliminar as irregularidades são bem sucedidas? Sendo a matéria que constitui a lâmina, as esferas e tudo o mais que participa na experiência constituída por uma miríade de partículas que nem sequer se encontram em repouso, como podemos nós saber se conseguimos atingir um grau significativo de eliminação de irregularidades nas superfícies que se tocam?

Numa perspectiva microscópica, essas superfícies são redes de partículas a distâncias umas das outras muito superiores à sua própria dimensão. E, para mais, em agitação térmica. As nossas tentativas, necessariamente macroscópicas, para eliminar irregularidades, possivelmente não passam de umas “cócegas” na superfície dos materiais e não evitarão que a cada nova experiência as condições não se repitam.

O que nos leva a acreditar que existirão sempre muitas causas desconhecidas. Dizer que Laplace estava enganado pode ser uma conclusão precipitada. Essa será, provavelmente, a tese que mais convem aos fundamentalistas da mecânica quântica.

E acerca da conjectura de Laplace esperemos não ver aparecer nenhum livro intitulado “O erro de Laplace”, já que um atrevido cientista português não teve o bom senso de evitar uma desnecessária desconsideração a Descartes ...

Jorge Oliveira

7 de fevereiro de 2006 às 06:04  

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