Passeio Aleatório
O que devemos aos Árabes
Crónica de Nuno Crato (*)
(*) Adaptada do «Expresso»
Crónica de Nuno Crato (*)
A EXPOSIÇÃO «L’âge d’or des sciences arabes» («A idade de ouro das ciências árabes») encerrou este fim de semana em Paris. Foi um sucesso estrondoso que atraiu muitos milhares de visitantes e permitiu um contacto com muitos instrumentos e manuscritos árabes medievais. Nas salas encontravam-se astrolábios, globos, ábacos, instrumentos de óptica e outros artefactos. Encontravam-se também dezenas de manuscritos preciosíssimos, que mostravam o avanço conseguido pela ciência árabe no seu período maior, ou seja, essencialmente entre o século IX, altura em que o califa al-Mamun (gov. 813-833) fundou em Bagdade a célebre Casa da Sabedoria (Bait al-Hikma), e o século XIV, quando os árabes estavam em recuo na Europa meridional.
Quem não tenha tido oportunidade de ver a exposição pode sempre tentar adquirir pela Internet o catálogo ou alguma das publicações que acompanharam o evento, nomeadamente um número especial da revista «Qantara». E quem vá a Paris terá sempre oportunidade de visitar o Instituto do Mundo Árabe, junto ao Sena, quase em frente à igreja de Nôtre Dame.
Nesse edifício há um café, um bazar de mercadorias árabes, sobretudo magrebinas, uma biblioteca e uma esplêndida livraria. Quem se interesse por história da ciência poderá perder aí muitas horas e também esvaziar rapidamente a carteira.
A ascensão e queda da influência da ciência árabe medieval ocorre em paralelo com a ascensão e queda dessa civilização. Mas há muitos fenómenos ainda hoje pouco compreendidos. Como foi possível que os árabes se tivessem tão rapidamente tornado a maior potência científica da época? E como foi possível que mais rapidamente ainda se tenham enquistado e afastado da revolução científica? Dois factores são habitualmente apontados pelos especialistas. Um é a liberdade de troca de opiniões, de circulação de ideias, de escolas e de estudiosos; liberdade que surge a par com uma descentralização dos centros de conhecimento e a concorrência entre diferentes escolas. Outro factor é o respeito mútuo entre a religião e o conhecimento religioso, na maioria dos casos feito de um casamento entre os dois empreendimentos. Quando esses dois factores falharam, a ciência sofreu irremediavelmente.
Fala-se de Galileu e da perseguição que lhe foi movida nos seus últimos anos de vida pela Igreja. Mas, no fim, a Europa e as suas igrejas deixaram que as ideias e a ciência de Galileu triunfassem. O mesmo não se passou no mundo árabe.
Entre os temas mais discutidos recentemente, está o verdadeiro papel da ciência dos islamitas. A ideia mais comum é que os árabes se limitaram a ser tradutores e depois transmissores da ciência da Antiguidade clássica. Teriam começado por traduzir Arquimedes, Aristóteles, Plínio e outros, importado o sistema de numeração hindu, sistematizado os conhecimentos dessas civilizações e servido de portadores e transmissores do facho da ciência.
Numa série de estudos recentes, Roshdi Rashed e outros historiadores mostraram que esta visão tradicional é enganadora. Os árabes desenvolveram a Álgebra e a Geometria, propuseram soluções novas para interpretar o movimento dos planetas, anteciparam algumas ideias de Copérnico, estudaram fenómenos ópticos desconhecidos, propuseram projecções cartográficas inovadoras e, com al-Hazen, introduziram o método experimental em Física.
Tal como hoje, a pura tradução e transmissão da ciência não é ciência. São os problemas e a actividade de descoberta e criação que fazem mover o conhecimento e as civilizações.
(*) Adaptada do «Expresso»
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2 Comments:
Vai ter de informar o Miguel Sousa Tavares, ele não sabe. Eu podia fazer isso, porque sei e porque já visitei o IMA em Paris, mas em mim ele não acredita. Agora num Prof talvez.
A exposição é de facto muito boa. Excepto numa coisa: eles chamam Espanha à Península Ibérica!!! e ao falar de uma altura em que a Espanha não existia enquanto tal.
Queixei-me e explicaram-me que era a forma de as pessoas perceberem de que região estavam a falar. Aparentemente, não só acham que as pessoas são ignorantes, como são incapazes de aprender.
Por comparação, a região indicada no mapa como "Norte de África" estava correcta. Denotava uma região geográfica, independentemente dos países e fronteiras políticas. Assim sendo, a região indicada como "Espanha" deveria ser nomeada "Península Ibérica".
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